O Exorcismo
Alguém bate
na porta. A Dama, a criatura de face dura e imóvel, deixa o bisturi em cima de
algum móvel coberto pela penumbra da sala, e abre a porta. Nerítico logo grita:
– Pilares!
Socorro!
– Shimah! –
o assaltante tinha uma voz grossa e distorcida que assustou o ultraquímico que
não parava de sangrar pelos cortes finos e precisos. – Senhores de Castelo
devem morrer...
– Pilares! Parceiro!
Me ajude!
O castelar,
que ofegava mostrando os dentes, completamente tomado pelo ódio, se aproximou.
Nerítico não reconhecia o companheiro:
– Verme
nojento! Como ousa penetrar nos domínios da santa Irmandade Cósmica?! – Pilares
puxou uma das facas e a aproximou do coração do castelar, sua mão tremia. – Eu
tenho...
Ele largou
a faca. Nerítico percebeu e continuou a chamar pelo amigo:
– Pilares!
Acorda!
– Cale a
boca, maldito! – gritou arfando, quase não conseguindo dizer. – Damah... Shime.
(Dama, mate-o)
Ela
assentiu prostrando-se levemente para frente e tirou do mesmo lugar em que
colocara o bisturi uma faca contorcida com várias lâminas, lisas e serrilhadas
que provocariam um belo estrago. Pilares voltou para a porta, caindo de lado no
batente. Seu estado era visivelmente péssimo:
– Pilares!
– gritou Nerítico uma última vez. Ele olhou de volta com um olhar assassino e
saiu do campo de visão, deixando a porta aberta.
A Dama
ficou parada diante do ultraquímico, analisando com a ponta de seu instrumento
em que lugar iria feri-lo mortalmente. O frio da navalha só piorava a sensação
de desespero de Nerítico, que só teve tempo de fechar os olhos...
...
O
ultraquímico se segurou, esperava sentir o corte e ele não vinha. Ouviu um
baque no chão e teve que abrir os olhos:
– Você está
bem?
– Dimios! –
Nerítico estava feliz por ver o castelar irritante.
No chão a Dama agonizava sentindo
descargas elétricas ininterruptas. Ela levantava as mãos tentando demonstrar
que queria piedade, como se quisesse se segurar em algo ou alguém pedindo
ajuda. Pôs uma das mãos no pescoço e continuava com seus movimentos lentos e
dramáticos.
– Tome, acho que isso é seu.
– Meu jaleco! Obrigado, não vivo
sem ele. – ainda com ele em mãos, Nerítico tirou um pote de um dos bolsos
internos e passou a pomada de seu conteúdo no corpo, cicatrizando os cortes. –
Isso já estava me incomodando.
– Suas mãos? – questionou Dimios.
– Não, não foi essa...
Perturbada! Isso foi causado por produtos químicos fortes nos laboratórios de
ultraquímica. Nunca deixei isso me fazer mudar de ideia sobre o tipo de Senhor
de Castelo que eu queria ser e acredito que essa sua prótese também não, estou
certo?
– Vamos, não temos tempo a
perder... – de maneira fria, a pergunta de Nerítico não foi respondida. – Ferus
e um ex-castelar estão perseguindo Pilares...
– Que ex-castelar? – perguntou
enquanto saiam e ele vestia o uniforme de ultraquímico, o jaleco, as luvas
pretas e os óculos de proteção. Aproveitou e colocou o suporte de granadas no
ombro, passando um dos braço.
– É uma
longa história... Aparentemente este planeta todo é embebido em panacéia.
– Então era
isso que eu não consegui decifrar... – Dimios olhou estranho para ele por ter
sido interrompido. – Continue...
– A cerca
de quinhentos anos, numa das batalhas em que os Senhores de Castelo tentaram
proteger um planeta chamado Máscar que acabou sendo destruído pela Irmandade,
um tal de Monaro, que é Senhor de Castelo, foi trazido para cá e sobreviveu
todo esse tempo...
–
Quinhentos anos? Mas isso é impossível!
– E desde
quando Senhores de Castelo deixam de lidar com o impossível? – respondeu com
desprezo. – Este planeta não é uma mistura perfeita de panacéia. Pelo que me
disseram existe uma caixa com o símbolo da ampulheta distorcida cujo conteúdo
tem um efeito forte de preservação de células. A fórmula não cura doenças,
parece conferir algo próximo da imortalidade ou da juventude eterna, deixando
os corpos do jeito que estão, perfeitos ou imperfeitos.
– Isso
significa que os gases tóxicos não surtem efeito mortal...
– Creio que
sim. – consentiu Dimios vendo que estava sendo entendido. – Eu só não entendo o
que aconteceu com Pilares...
– Ele me
pareceu estar sendo controlado. Eu o vi a pouco, sua voz estava diferente,
quase me matou. Justo eu!
– Segundo
Monaro, um serviçal altariano conhecido como o Ilusionista perdeu seu corpo por
ter desobedecido aos superiores. De alguma forma ele ataca pessoas e usa seus
corpos para reconstruir a estrutura gênica original. O que é quase impossível,
uma vez que não há pessoas normais neste planeta há vários séculos.
Infelizmente, nós chegamos aqui e temos qualidades genéticas perfeitas para ele
voltar a se regenerar. – Dimios seguia o sinal fantasma de Ferus e parou. – O
sinal termina aqui.
Eles
estavam diante de uma porta. O local todo era uma base térrea. Monaro falou aos
Senhores de Castelo que antigamente uma família vivia ali, juntando restos
aproveitáveis do lixo para dividir com os outros e um dia a facção da Dama fez
o que bem entendeu com eles. Na porta de entrada, seus esqueletos jaziam podres
e naquela porta fechada, o couro de suas peles estava estendido e pregado,
decorando o ambiente. Dimios abriu a porta e presenciou o exorcismo de Pilares,
feito por... Ferus?
...
Monaro
segurava as pernas do Senhor de Castelo, juntamente com suas mãos que estavam
amarradas. Ferus estava ajoelhado, com as mãos na cabeça dele. Seu cabelo
estava branco. Dimios e Nerítico não entenderam aquela cena, principalmente o
ultraquímico que jurava que os cabelos do jovem castelar eram de outra cor e
que a criatura que o ajudava não era um Senhor de Castelo.
Ferus
recitava algum encanto com voz tão distorcida quanto a de Pilares que se
convulsionava freneticamente, espumando de raiva. Ele cuspiu para o alto e
acertou o jovem castelar que permanecia inalterável. Com aquela voz
ensandecida, o assaltante berrou:
– QUEM...
É... VOCÊ?!
– Ferus...
Ferus Envolk...
– NÃOOO!!!
– no fim do grito, Pilares vomitou uma massa preta que fumegava e se mexia como
se estivesse viva. A gosma andou e parou a uma certa distância.
Ferus
parecia estar exausto. Seus olhos ficaram brancos e desmaiou, o cabelo voltou a
ficar azul. Pilares acordava do transe como se nunca tivesse sido dominado pelo
Ilusionista. Sua memória estava fraca e só conseguiu perceber o amigo:
– Nerítico?
O que aconteceu? – ele cambaleava, completamente tonto, não conseguindo se
sustentar direito e quando pode ver direito, deu de cara com Monaro. – Aaaaah!
– e desmaiou também.
– Alguém
tem muito que me explicar... – disse Nerítico.
– Pra mim
também... – completou Dimios.
– Vocês
realmente não conhecem nada da Irmandade Cósmica... – a substância negra estava
se mexendo de novo e rapidamente passou por entre as pernas dos Senhores de
Castelo que estavam distraídos. – A gosma!
– Ahn?!
– O quê?!
– Droga...
O material vai acabar conseguindo voltar ao Ilusionista!
– Temos
outros assuntos para tratar. – conclui Dimios, sério, olhando o rastro gosmento.
– Vamos voltar ao seu acampamento Monaro, temos de reunir os Senhores de
Castelo. Agora só falta um...
– Entendo.
Precisam se reagrupar... Creio que vocês podem levar estes dois. Nas minhas
costas é que eles não vão. – o açougueiro apontou para as costas cheias de
espinhos.
Nenhum dos
dois riu, a piada não era engraçada com aquele clima estranho...
...
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