A Queda
“Guerra em
um dia de tempestade vermelha”, não poderia ser um dia pior. “Eu tinha uma vida
normal, quero dizer, para um herói eu tinha uma vida normal. Servi a Ordem dos
Senhores de Castelo como fiel seguidor, nunca matei ninguém, poupando a vida de
vários seres miseráveis que não mereciam sequer existir. Eu tinha a paz dentro
de mim e estava feliz com todo o resto. A vida não era fácil, muitas vezes ter
como arma apenas uma espada encantada me deixou em sérios apuros – eu não a uso
para matar, afinal. Tudo seguia o seu curso. Havia até alguns malfeitores de
meu passado que estavam levando uma vida melhor depois que eu os tirei das
trevas. E então, numa fatídica tarde, eles chegaram...”
“Nos céus
noturnos de Máscar uma imensa sombra negra irrompeu o silêncio do meu pacífico
planeta do primeiro quadrante atacando sem piedade. Acordei com o susto, aquela
enorme nave estava justamente sobre mim na subsede da ordem, onde eu tirava um
leve cochilo para depois partir para a minha casa. As missões eram estafantes,
perigosas, e muito comum ganhar pouco em troca de altos sacrifícios. Meu
parceiro, um alquimista, um homem muito inteligente e sério, se chamava Tálio.
Agora ele deve estar morto, mas isso não é importante. Eu estava lá, dormindo e
meu planeta natal estava sendo tomado de assalto. Procurei minha velha espada e
uma bomba foi lançada sobre o castelo, levando tudo pelos ares. Nunca mais eu
vi a minha espada...”
“Quando
acordei estava dentro dela, aquela nave colossal. Olhei por uma das janelas
daquela prisão e via uma luz forte. Pensei que estivéssemos passando por uma
estrela. Eu estava preso pelos pulsos logo acima de mim com algemas de
drenagem. Olhei para elas e notei runas mágicas que brilhavam com várias cores.
Tentei me livrar delas e sentia a fadiga aumentar, me deixando ofegante.”
“A porta se
abrira e vi pela primeira vez a face de um altariano. Não sei como descrever
aquela visão, era como se a suprema beleza tivesse sido alcançada. Era uma
mulher, vestida com uma armadura branca com um brilho espelhado, refletindo a
luz. Pelas junções era possível ver algum tipo de couro na mesma cor, somente
um pouco mais fosco. Seu sorriso era delicado, as pontas de seus dedos eram
suaves e levemente rosados. Seu andar era austero e elegante. Se eu não a
conhecesse agora juraria que me apaixonaria de novo. Sim, eu me apaixonei por
aquela mulher e me arrependo amargamente disso. Debaixo daquela face límpida e
perfeita havia um ser vil e asqueroso que faria você se contorcer de dor só de
pensar nas mais terríveis possibilidades de que era capaz. Nunca ouvi o nome
dela, guardo na memória somente a única frase que ela disse olhando por aquela
janela enquanto eu ainda estava consciente de mim: ‘Adoro ver como os planetas
explodem e se desmancham no espaço’. Eu fiquei gelado. Não devo ter dormido
mais que vinte quatro horas e isso foi o suficiente para que aquele monstro
espacial destruísse todas as minhas lembranças, a minha família, o lugar onde
eu havia crescido. Tudo havia voltado ao pó.”
“Aquela altariana
olhou pra mim sorrindo com seus olhos prismáticos que transbordavam desejo e
loucura. Ali mesmo ela me aplicou uma injeção que me deixou severamente doente.
Vomitei dezenas de vezes, sofri com calafrios e com febres constantes, suando
litros de suor. As convulsões repentinas me assustavam em todas as ocasiões, eu
jurava que iria morrer. E pensar que aquilo não era nem o começo.”
“Depois da
longa viagem, a nave me deixou junto de outras pessoas e alguns altarianos numa
grande plataforma. A centenas de metros do chão, o vento soprava em alta
velocidade refrescando de alguma forma milagrosa as dores que eu sentia por
todo o corpo. A nave espacial partiu e pude ver uma enorme inscrição em sua
lateral que dizia ‘Quarentena’. Senti o mundo rodar e desmaiei. Só fui acordar
em um laboratório, rodeado por máquinas enormes com cerca de três metros de
altura e também de comprimento. Eu estava preso de novo, dentro de uma cápsula
de contenção lacrada com uma porta de vidro curva. Dali eu conseguia ver outras
pessoas e, infelizmente para mim, eu estava perto da mesa de cirurgias e o
vidro não era aprova de som...”
“Passei
meses preso naquela cela diminuta, entubado, vendo atrocidades que tenho pavor
de contar, esperando a minha vez. Eu... Eu preciso contar! Eu tenho que
contar... Eu a vi, aquela monstra, decepando partes dos corpos das pessoas sem
anestesia e costurando a esmo em qualquer lugar! Meus rosto, naquela época,
ficava sempre úmido com as minhas lágrimas, sempre que eu me lembrava daquelas
pobres crianças. Não! As crianças não! Não retalhe elas!”
“Aquela
imagem era triste demais. Eu era noivo! Eu ia me casar e ter filhos como
aquelas crianças e estava preso, sem que ninguém viesse me resgatar... Foi aí
que eu entendi. Percebi a mais dura de todas as verdades. Eu estava sozinho...
A Ordem havia me abandonado, eu nunca seria resgatado...”
“Chegara a
minha vez. As cerras daquelas grandes máquinas se afiavam para me cortar, me
abrir, me dissecar... Extirpar a minha humanidade em questão de minutos. E
então fizeram, arrancaram a minha genitália, tiraram meus braços e pernas...
Gritei por misericórdia até as minhas cordas vocais falharem de vez. Nada.
Nenhum raio de luz me iluminou naquele instante. Permaneci naquela mesa por mais
algumas horas, totalmente enfaixado, com os membros amputados e totalmente
rouco. Tentava mover meu corpo, o resto do meu corpo, para que eu saísse
daquela situação desesperadora e escapasse de algum forma do próximo sortilégio
que aquela mulher insana pudesse ter contra mim. Me remexi para todos os lados
e a única coisa que consegui foi cair no chão, machucando a cabeça. A altariana
logo chegou, mandou os maquinários me recolocarem no lugar e inseriu um tubo na
minha boca. O gosto era metálico. Um metal líquido e extremamente quente foi
vertido pela minha garganta queimando todo o meu interior. Desmaiei mais uma
vez.”
“Quando
acordei, pensei em estar finalmente no paraíso – qualquer lugar longe daquilo
deve ser o paraíso. Não, não era lá. Eu estava na mesma mesa. Meus braços e
pernas haviam sido substituídos por membros de outras pessoas. Olhando direito,
minha vista estava embaçada, só conseguia enxergar em preto e branco. As minhas
costas ardiam – algo as estava perfurando. Minha cabeça também estava doendo,
latejava como nunca. Vendo que estava livre, coloquei as mãos no rosto e
encontrei chifres nas têmporas. ‘Com o quê eu devia estar parecendo naquele
momento’, eu pensava. Inteiramente atordoado, crendo estar vivendo um pesadelo,
caminhei tentando encontrar uma saída. As luzes se apagaram e comecei a flutuar
no ar. Seria bom se eu tivesse conseguido a habilidade de voar. Mas não era
isso também. O laboratório onde eu estava despencava naquele exato momento,
sendo descartado como algo qualquer que não havia agradado à altariana. Eu
sobrevivi a queda...”
“Caminhei
por horas, com fome, com sede, sentindo meu corpo queimar sem parar. Ouvi
gritos e num relapso dos meus tempos de herói, corri para ver o que era. Diante
de mim estava uma criatura tão disforme quanto eu que me deu calafrios. Seu
rosto era duro, estático, plastificado. Dedos compridos e languidos que
seguravam uma pequena faca que estava sendo usada para abrir a barriga de um
homem – estando ele ainda vivo. Peguei o primeiro pedaço de metal que encontrei
e bati na coisa. Bati, bati com força, sentia o meu corpo se libertar das
minhas aflições e caí em mim... Eu estava gostando!”
“Sujo de sangue, olhei para o
homem com a barriga aberta e me penalizei pelo seu estado. Amparei sua cabeça
com o braço e tentei demonstrar alguma piedade. Compreendendo que ele havia
parado de respirar, sentia algo forte agindo dentro de mim, querendo sair. Eu
relutei o quanto pude e coloquei a mão em suas vísceras caídas, levando-as a
boca. Me satisfiz como nunca havia sentido antes! Deixei o lado escuro tomar
conta de mim e eles apareceram, todos aqueles espinhos metálicos se projetaram
através da minha carne juntamente com uma cauda comprida tão espinhosa quanto
as agulhas que saíram das minhas costas. Olhei para mim, a minha roupa era
preta e quatro quadrados brancos com seis pontos estavam marcados. Lambi os
dedos melados de sangue e ouvi alguém gritar ao longe: ‘Açougueiro’!”
...
– Você
queria ouvir Dimios, esta é a minha história.
– Como acha
que vou confiar em você agora? – perguntou ele, com olhar sério.
– Não
confie, apenas não confie. O cheiro de sangue me deixa louco! – Monaro riu, não
como homem, mas como algo que definitivamente não era mais humano.
...
Nenhum comentário:
Postar um comentário