Hell’s Drink
São Paulo,
chuva forte, 21 horas, restaurante Luna di Capri. Os clientes estão jantando
calmamente, aproveitando o clima triste e nostálgico. Uma ventania forte abre
as portas, assustando a todos. Os garçons e os seguranças tentam forçar o fechamento
da porta, o vento continuava forte, até mesmo para aquela quantidade de pessoas.
Quando finalmente conseguiram fechar a porta, a ventania e a chuva cessaram
subitamente. Um dos clientes apalpa os bolsos depois de perceber que algo havia
lhe sumido...
De posse do
chip, fui para o alto dos prédios, me tornei incandescente e voei em disparada
ao espaço. Procurei o satélite G que vistoria todo o planeta e pousei nele.
Achando uma abertura, coloquei ali um aparelho com o chip especialmente
preparado para encontrar Minerva. Invadi todo o sistema daquela empresa e, com
ele, redirecionei outros satélites que também redirecionaram outros aparelhos
eletrônicos. Naquele momento, todas as telas de celular, televisores e
computadores estavam mostrando a mesma mensagem: um V e um A vermelhos no fundo
preto com as letras IX em branco no canto. Durante cinco minutos, todo planeta
estava passando pelo scanner mundial e enviando todo o conteúdo para um prédio
cheio de computadores nos EUA.
Desci do
satélite depois de normalizar todos os sistemas e como um meteoro fui direto
para o prédio que pertencia a uma empresa de Tecnologia da Informação que
iniciava uma nova filial. A descida não fora fácil. Tive de usar a minha
armadura dourada para resistir ao atrito do ar. Fumegando, cheguei ao local
esperado, o aparelho com o chip estava intacto.
Sentei-me e
comecei a procurar por Minerva, todo o conteúdo baixado era grande demais e os
computadores ficaram lentos, mas em algumas horas já tinha a minha resposta:
– Deserto
de al-Khali, Arábia Saudita. Um, dois, três, quatro, cinco, seis níveis
abaixo...
Digitei uma
senha no computador, me levantei e voltei a voar. Atrás de mim o prédio inteiro
explodiu, levando consigo todos os dados que havia coletado, incluindo o chip
especial que Morticia me dera.
Atravessei
os céus do mundo e cheguei ao local da entrada do inferno de Balbero. No meio
do nada, me questionei se era ali o tal local e um escorpião negro brotou das
areias. Tive certeza e bati as palmas, me concentrando. Do céu, uma harpa negra
caiu, sob a luz da lua refletia um brilho violáceo. Ela começou a tocar sozinha
e eu apenas movimentei os dedos para modificar a intensidade. Então a boca do
inferno se abriu. O zumbido de milhões de insetos foi ouvido, junto com vapores
que efervesciam dali.
– O cheiro
de Balbero... – tirei um frasco com um líquido negro do bolso. Abri a tampa e o
conteúdo borbulhou. Tomei tudo, sentindo seu gosto amargo e purgante.
Afastei-me
e tomei impulso para cair no meio do grande buraco. A queda demorou algum
tempo, visto que eu não iria aos campos de tortura, mas ao baixo inferno,
próximo ao Pandemônio, lar dos grandes magos das trevas e dos piores demônios
que existem. Lá embaixo não há mais nada o que perder, não há luz, ninguém
normal consegue enxergar.
– Lasciate
ogni speranza voi ch’entrate! – “Vós que entrais, deixai toda a esperança”,
como dizia a obra de Dante.
Quando
terminara de cair vi que minha forma humana me abandonara completamente,
desfeita ao longo do caminho. Sobre a minha carne, escamas e espinhos negros
que iam da cabeça e terminavam numa calda fina e pesada como uma corrente se
sobressaiam, junto com um par de asas negras maiores que o meu corpo. O branco
dos olhos estava negro, tomado pelas trevas, e a íris tornara-se amarela. Não
há luz no baixo inferno, toda a luz é redirecionada para um ponto específico.
Para se enxergar deve-se ter os olhos assim, demoníacos, única forma de
sobrevivência. Aquela forma na era a transformação normal, era a imagem que eu
escondia no fundo dos meus pesadelos, o dragão demônio!
Naquele
momento, comecei a ouvir vozes que me incomodavam:
– Você é
fraco... Fraco... Você é incapaz... Não vai conseguir... Não vai... Ele está
morto... Você está atrasado... Atrasado... Sim... Atrasado! Ele está morto! Não
adianta seguir em frente! Não adianta... É tarde demais...
–
QUIETOOOOOOOOOOOOS!!! – rugi ferozmente, silenciando a fascinação, a voz que
tanto tem desviado os humanos de seus caminhos.
Sem mais
demoras, comecei o longo caminho que ia para baixo. Passei por largos
corredores rochosos onde haviam pinturas realistas, como uma mulher de chifres
que controlava os cães do inferno ou outra onde uma linda mulher de púrpura
sentava-se sobre um dragão escarlate de sete cabeças. Seus olhos queimavam de
raiva, isso eu digo com toda a certeza!
Mais alguns
passos e as paredes tremeram. Delas, dois enormes soldados de pedra surgiram um
de cada lado, bloqueando o caminho. Fortaleci meus punhos e dei dois socos
certeiros que dissolveram os dois. Minha raiva estava começando a pulsar. No
inferno, cada sentimento pecaminoso é aumentado à décima potência.
Com a
destruição das sentinelas, uma construção como as da antiga Grécia, com colunas
altas, frias e escuras, surgia do redirecionamento do longo corredor cavernoso.
O chão parecia vidro e dentro dele caveiras foram cristalizadas. Ao primeiro
movimento sobre o piso macabro, novos soldados de pedra surgiram por entre as
colunas. Andavam compassadamente e, com cada um dos seus quatro braços,
brandiam espadas afiadas em alta velocidade. Decidi então usar a força do meu
rugido para destruí-los, antes mesmo que chegassem até mim. Não sobrou um de
pé, além de aquela estrutura ter sido deveras avariada.
Um zumbido
soou... Um não. Milhares de sons como de um enxame vinham do fundo, ao longe!
Ali havia um enxame de mordedores, pequenos seres negros e carnívoros com asas.
O barulho não vinha delas, vinha das bocas cheias de dentes que abriam e
fechavam sem cessar. Eles guardavam a próxima saída.
Percebendo
que eu estava ali, vieram na minha direção e eu, sem pensar, corri na direção
deles, liberando mais espinhos e lançando-os com força. Os espinhos que
acertavam uns se abriam e atiravam espinhos menores que atingiam outros
mordedores, derrubando vários de uma vez. Consegui atravessar a porta e, para
meu espanto, ela desaparecera a minha vista.
Dentro do novo salão, vislumbrei
algo que para muitos seria maravilhoso. Grande colunas esculpidas finamente
cravejadas com pedras preciosas grandes e pequenas, uma escadaria coberta por
um cortinado de filamentos de ouro e prata, ladeado por cães do inferno e, no
topo, alguém estava sentado sobre almas escravizadas que lamuriavam baixinho.
Ela, uma mulher enorme com uns três metros de altura, estava adornada apenas de
jóias e metais preciosos e um diadema que deixava recair sobre o rosto fios de
ouro que escondiam lhe a face. Ao seu lado, um narguilé acesso que ela fumava,
liberando uma fumaça rosa e irritante. Os cães se levantaram e me atacaram,
mordendo meus dois braços. Suas mordidas queimavam profundamente na carne,
independente da couraça de metal. Com a violência e força, os dois braços foram
arrancados:
– MALDITOS! – os pedaços inertes
de carne desceram bruscamente em suas goelas, dilacerando totalmente o
interior.
– Parabéns, por ter chegado
aqui... – a bruxa se levantou por interesse.
– Balbero... – cuspi no chão em
rever a demônia que conhecera meus antepassados.
– Victório Anthony... Creio que
já sabe o que quero, não?
– Nunca entregarei para você!
Minha coroa é mais preciosa que minha própria vida!
– Vamos ver se você tem tanta
garra assim depois de enfrentar os meus soldados... – alguém surgiu no canto
direito. – Minerva...
– Então aí está você, miserável!
Colocar seu próprio filho nisso!
– Aquela peste não devia ter
nascido!
– O que disse?! – das amputações,
novos braços muito maiores surgiram, com mãos gigantes que tocavam o chão. –
Você vai se arrepender!
– Não tenha tanta certeza... –
seus olhos ficaram amarelos e o impulso lupino fora novamente lançado. A força
da distorção preenchia todo o salão e me sufocava, me fazendo perder a noção de
espaço.
– Repetitiva... – me apoiei sobre
o braço esquerdo e levantei a mão direita contra ela. – Aqui eu estou livre
para assinar a sua sina, maldita...
Lanças negras, finas como agulhas,
brotaram do chão, empalando minha inimiga. Ela gemeu por mais alguns instantes,
se debatendo. Aproximei-me e esmaguei-lhe o crânio com meus longos dedos.
– Vamos, mande mais! Eu quero
mais! Vou mostrar para você que não há empecilho que se aponha a mim! – Balbero
pendeu a cabeça para o lado.
– Lord Dri... Venha a mim. –
cerrei levemente os olhos por indignação, vendo ele aparecer da abertura da
esquerda.
– Como sempre, demônios são lixo
em se tratando de seus meios sujos...
Lord Dri estava vestido de
armadura e empunhava uma espada longa. Senti que aquelas armas estavam
impregnadas de magia para melhorar seus atributos. Como um nobre cavaleiro, ele
correu em direção a mim.
– Não brinque comigo Balbero! –
com a força do pensamento, ergui o lord no ar antes que se aproximasse mais.
Olhei fixamente e deixei meu terceiro olho se abrir. – Sua magia é forte, mas
nem tanto!
Desfiz os encantamentos e, com um
toque, desmanchei a armadura e a espada com facilidade. Fechei os olhos, Lord
Dri desmaiou e o coloquei no canto, atrás de mim.
– O que tem agora para mim bruxa
das trevas?! – mirei os dedos da mão direita na direção da imagem de Balbero e
ela sumiu. Em seu lugar, ouvi um barulho de vidro se quebrando. A fumaça do
narguilé cessou. Bufei de raiva. – Maldita, onde se esconde?!
Havia dois caminhos para seguir,
pensei por um instante e segui meus instintos, quebrando a parede ao meio,
revelando uma nova saída. Segui por aquele caminho e saí num salão muito maior
e amplo. Nele havia um corredor que passava por um grande círculo e depois
subia uma longa escadaria. Ao longo dele, podia se ver várias chaminés que
impregnavam completamente o lugar com preparados mágicos e entorpecentes. Senti
meu corpo formigar, perdendo parte da força. No topo, um trono de ouro puro,
com aquela mulher de três metros sentada em cima dele. Flutuando no ar, um de
cada lado, haviam duas pessoas, uma era Cris, completamente gelado e a outra eu
não conseguia ver direito. Do trono emanava uma aura diabólica, não era ilusão,
Balbero estava ali:
– Se assim deseja, venha
enfrentar a última peça do tabuleiro que preparei especialmente para ti,
desafeto nojento!
No centro do círculo, alguém com
um capuz me esperava. O cheiro dela, uma mulher, destoava da fumaça viciante.
Seus olhos eram vermelhos, os caninos eram salientes e sua pele era cinza.
– Eu quero o seu sangue,
Victório! – pela voz, pude reconhecê-la.
– Morticia! Espere, você está
diferente!
– Recebi a visita de meu pai...
– Tomaste sangue de demônio?!
Droga! O que você tem na cabeça?! Eles podem te usar para qualquer coisa
enquanto o mal toma conta de você!
– Eu sou assim, querido... – não
havia como refutar o controle de Balbero, Morticia viria para cima de mim com
tudo.
– Morticia! – seus passos em
minha direção me queimavam, eu sentia uma dor excruciante.
Ela surgiu na minha frente e me
pegou pelo pescoço, apertando-o com força. Da minha mão direita um olho surgiu,
compelindo a tensão contra ela. Morticia me jogou do outro lado do círculo,
antes que eu terminasse de cair ela voou sobre mim e me chutou para baixo. No
chão ela chutou mais e mais vezes. Não tive escolhe, tive de liberar um pouco
de luz.
– Me desculpe... – os raios
luminosos queimaram lhe um pouco da pele, afastando-a de mim.
A minha energia estava sendo
drenada pelo baixo inferno e parei de brilhar. Levantei-me, Morticia se
recuperou rapidamente e vinha me atacar com muito mais fúria gerando
redemoinhos ao seu redor, tentei me proteger e levantei do chão novas lanças
negras. Aquilo não era o bastante para detê-la e elas se desmancharam perante
sua presença raivosa. A ventania se transformava em tempestade, rasgando minha
couraça metálica e decepando minhas asas e cauda. A dor era inominável:
– Pare! Não me obrigue a te
atacar! – ela não me ouvia.
Levantei a mão esquerda e um olho
se abriu em sua palma. Diferente do outro que compele, este absorve e não
qualquer coisa, precisamente energia ruim e pesada. Mirei o olho em Morticia e
lhe drenei todas a forças, alio vampiro era eu. Ela tentou aumentar a
intensidade, mas não havia para onde correr, os longo dedos fecharam Morticia
em minha mão.
– Você é forte... Se eu não
estivesse com pressa... Talvez lhe desse a oportunidade de usar todos os
poderes... – deixei-a no chão e me aproximei da escadaria.
Consciente do estrago que havia
feito me dirigi para Balbero que estava excitada com aquelas cenas, apertando
fortemente os braços de seu trono de ouro que ficaram amassados. Meu corpo,
principalmente minhas costas, sangravam muito, por mais que eu quisesse, era
difícil curar aquelas feridas causadas pela força demoníaca. A mulher de três
metros se levantou e bateu palmas no meio do silêncio infernal.
– Parabéns! Vejo que continua
poderoso!
– Eu só vou dizer uma vez:
LIBERTE O CRISTIAN! – gritei com o resto de força que me restava.
– CALE-SE! – o lugar inteiro
tremeu. – Não diga mais uma palavra! Você está em meus domínios, eu dou as
ordens. E no momento, você não está em condições de reclamar. – ela sorria por
debaixo do adereço de ouro que lhe cobria a face.
– O quê?! – com um movimento ela
levantou o rosto da outra pessoa. – En’hain! Como pode sua...
– Quieto! Ou matarei os seus dois
meninos! – eu arfava de raiva. – Agora sim, entregue a sua coroa!
E agora? O que eu poderia fazer?
Aquilo não era apenas uma coroa, era a chave do mundo que eu protejo...
– Hahahah... – comecei a rir sem
parar. – Hahahahah...
– Perdeste
o senso? Matarei os seus amigos! – lancei-lhe um olhar louco e penetrante.
– Você
realmente acha que eu a entregaria sem lutar?
– Não
ous... – Balbero começou a vomitar o seu próprio sangue podre.
–
Hihihih... Você não sabe com quem mexeu Balbero... Sou um guardião do meio,
alguém que vive no limiar das trevas e da luz. Normalmente eu sou gentil,
pondero sobre o que estou fazendo e resguardo o meu lado sombrio. Mas agora eu
estou cansado, vou deixá-lo assumir completamente as minhas vontades...
Flutuei por
um instante, caindo no transe, apagando completamente a minha luz interior. Meu
corpo foi tomado pela treva, crescendo e crescendo, assumindo a minha forma
mais terrível. De meus ombros surgiram duas cabeças e das costas outras duas.
Cada uma com uma máscara. As dos ombros eram vermelha e branca e as outras duas
eram azul escuro e negra. Do alto da cabeça do meio, que portava a máscara
dourada, uma coroa reluzente brilhou, despontando de dentro da carne. Os
pescoços ficaram longos e novas asas cresceram muito maiores que as anteriores
e olhos, vários olhos, olhos por todos os lados se abriram, sugando as forças
diabólicas de Balbero. O bater de asas foi estrondoso, o pequeno universo
criado pela bruxa se desfazia com o ímpeto de seu movimento. A máscara dourada
começou a rachar e seus pedaços vieram ao chão. A minha face, a minha
verdadeira face, estava amostra. O pescoço do meio se esticou até Balbero,
fazendo com que minha face encarasse-a e, com voz dissonante cinco vezes
multiplicada, falou:
– Bem vinda
ao mais terrível dos pesadelos...
–
Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh...
...
Ainda tonto, fui acordado por En’hain.
– Gunshin!
Precisamos sair daqui! Isto está desmoronando!
– ... – não
respondi.
– Acorde!
–
Cristian?!
– Quem?
– Cristian,
um menino de três anos, você o viu?
– Não... –
me levantei e olhei para o lugar em que estava. Tudo parecia uma caverna agora,
todo mal havia sido varrido de uma vez.
No local do
trono, havia uma porta esculpida em pedra que estava entreaberta. Não o vendo,
corri para lá. Diferente do salão anterior, este continuava escuro, tomado pela
angustia e pelo desprazer. Parado, ele encarava o escuro, o meu pequeno rapaz.
Peguei um pouco das trevas do lugar e pude ver o que havia naquela escuridão:
um selo. Eu desconhecia o desenho, não era magia nem humana, nem de meu mundo e
muito menos era magia demoníaca. Era algo fraco, porém reluzente e persistente.
Ouvi a voz do tio San na minha mente:
– O selo
precisa ser fechado...
– Mestre, o
que é isso?
– Você sabe
o que é. Seu nome não deve ser dito... – senti o meu corpo gelar.
Voltando a
mim, ordenei:
– En’hain,
leve Cristian daqui agora! – o barman obedeceu sem demora.
Cristian
relutou em seus braços, mas foi levado. Passando pelo portão de pedra eu o
fechei.
– Gunshin?
– En’hain se assustou com a porta. – Gunshin!
...
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