segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Hell's Drink


Hell’s Drink

 

            São Paulo, chuva forte, 21 horas, restaurante Luna di Capri. Os clientes estão jantando calmamente, aproveitando o clima triste e nostálgico. Uma ventania forte abre as portas, assustando a todos. Os garçons e os seguranças tentam forçar o fechamento da porta, o vento continuava forte, até mesmo para aquela quantidade de pessoas. Quando finalmente conseguiram fechar a porta, a ventania e a chuva cessaram subitamente. Um dos clientes apalpa os bolsos depois de perceber que algo havia lhe sumido...

            De posse do chip, fui para o alto dos prédios, me tornei incandescente e voei em disparada ao espaço. Procurei o satélite G que vistoria todo o planeta e pousei nele. Achando uma abertura, coloquei ali um aparelho com o chip especialmente preparado para encontrar Minerva. Invadi todo o sistema daquela empresa e, com ele, redirecionei outros satélites que também redirecionaram outros aparelhos eletrônicos. Naquele momento, todas as telas de celular, televisores e computadores estavam mostrando a mesma mensagem: um V e um A vermelhos no fundo preto com as letras IX em branco no canto. Durante cinco minutos, todo planeta estava passando pelo scanner mundial e enviando todo o conteúdo para um prédio cheio de computadores nos EUA.
            Desci do satélite depois de normalizar todos os sistemas e como um meteoro fui direto para o prédio que pertencia a uma empresa de Tecnologia da Informação que iniciava uma nova filial. A descida não fora fácil. Tive de usar a minha armadura dourada para resistir ao atrito do ar. Fumegando, cheguei ao local esperado, o aparelho com o chip estava intacto.
            Sentei-me e comecei a procurar por Minerva, todo o conteúdo baixado era grande demais e os computadores ficaram lentos, mas em algumas horas já tinha a minha resposta:
            – Deserto de al-Khali, Arábia Saudita. Um, dois, três, quatro, cinco, seis níveis abaixo...
            Digitei uma senha no computador, me levantei e voltei a voar. Atrás de mim o prédio inteiro explodiu, levando consigo todos os dados que havia coletado, incluindo o chip especial que Morticia me dera.
            Atravessei os céus do mundo e cheguei ao local da entrada do inferno de Balbero. No meio do nada, me questionei se era ali o tal local e um escorpião negro brotou das areias. Tive certeza e bati as palmas, me concentrando. Do céu, uma harpa negra caiu, sob a luz da lua refletia um brilho violáceo. Ela começou a tocar sozinha e eu apenas movimentei os dedos para modificar a intensidade. Então a boca do inferno se abriu. O zumbido de milhões de insetos foi ouvido, junto com vapores que efervesciam dali.
            – O cheiro de Balbero... – tirei um frasco com um líquido negro do bolso. Abri a tampa e o conteúdo borbulhou. Tomei tudo, sentindo seu gosto amargo e purgante.
            Afastei-me e tomei impulso para cair no meio do grande buraco. A queda demorou algum tempo, visto que eu não iria aos campos de tortura, mas ao baixo inferno, próximo ao Pandemônio, lar dos grandes magos das trevas e dos piores demônios que existem. Lá embaixo não há mais nada o que perder, não há luz, ninguém normal consegue enxergar.
            – Lasciate ogni speranza voi ch’entrate! – “Vós que entrais, deixai toda a esperança”, como dizia a obra de Dante.
            Quando terminara de cair vi que minha forma humana me abandonara completamente, desfeita ao longo do caminho. Sobre a minha carne, escamas e espinhos negros que iam da cabeça e terminavam numa calda fina e pesada como uma corrente se sobressaiam, junto com um par de asas negras maiores que o meu corpo. O branco dos olhos estava negro, tomado pelas trevas, e a íris tornara-se amarela. Não há luz no baixo inferno, toda a luz é redirecionada para um ponto específico. Para se enxergar deve-se ter os olhos assim, demoníacos, única forma de sobrevivência. Aquela forma na era a transformação normal, era a imagem que eu escondia no fundo dos meus pesadelos, o dragão demônio!
            Naquele momento, comecei a ouvir vozes que me incomodavam:
            – Você é fraco... Fraco... Você é incapaz... Não vai conseguir... Não vai... Ele está morto... Você está atrasado... Atrasado... Sim... Atrasado! Ele está morto! Não adianta seguir em frente! Não adianta... É tarde demais...
            – QUIETOOOOOOOOOOOOS!!! – rugi ferozmente, silenciando a fascinação, a voz que tanto tem desviado os humanos de seus caminhos.
            Sem mais demoras, comecei o longo caminho que ia para baixo. Passei por largos corredores rochosos onde haviam pinturas realistas, como uma mulher de chifres que controlava os cães do inferno ou outra onde uma linda mulher de púrpura sentava-se sobre um dragão escarlate de sete cabeças. Seus olhos queimavam de raiva, isso eu digo com toda a certeza!
 
 
            Mais alguns passos e as paredes tremeram. Delas, dois enormes soldados de pedra surgiram um de cada lado, bloqueando o caminho. Fortaleci meus punhos e dei dois socos certeiros que dissolveram os dois. Minha raiva estava começando a pulsar. No inferno, cada sentimento pecaminoso é aumentado à décima potência.
            Com a destruição das sentinelas, uma construção como as da antiga Grécia, com colunas altas, frias e escuras, surgia do redirecionamento do longo corredor cavernoso. O chão parecia vidro e dentro dele caveiras foram cristalizadas. Ao primeiro movimento sobre o piso macabro, novos soldados de pedra surgiram por entre as colunas. Andavam compassadamente e, com cada um dos seus quatro braços, brandiam espadas afiadas em alta velocidade. Decidi então usar a força do meu rugido para destruí-los, antes mesmo que chegassem até mim. Não sobrou um de pé, além de aquela estrutura ter sido deveras avariada.
            Um zumbido soou... Um não. Milhares de sons como de um enxame vinham do fundo, ao longe! Ali havia um enxame de mordedores, pequenos seres negros e carnívoros com asas. O barulho não vinha delas, vinha das bocas cheias de dentes que abriam e fechavam sem cessar. Eles guardavam a próxima saída.
            Percebendo que eu estava ali, vieram na minha direção e eu, sem pensar, corri na direção deles, liberando mais espinhos e lançando-os com força. Os espinhos que acertavam uns se abriam e atiravam espinhos menores que atingiam outros mordedores, derrubando vários de uma vez. Consegui atravessar a porta e, para meu espanto, ela desaparecera a minha vista.
Dentro do novo salão, vislumbrei algo que para muitos seria maravilhoso. Grande colunas esculpidas finamente cravejadas com pedras preciosas grandes e pequenas, uma escadaria coberta por um cortinado de filamentos de ouro e prata, ladeado por cães do inferno e, no topo, alguém estava sentado sobre almas escravizadas que lamuriavam baixinho. Ela, uma mulher enorme com uns três metros de altura, estava adornada apenas de jóias e metais preciosos e um diadema que deixava recair sobre o rosto fios de ouro que escondiam lhe a face. Ao seu lado, um narguilé acesso que ela fumava, liberando uma fumaça rosa e irritante. Os cães se levantaram e me atacaram, mordendo meus dois braços. Suas mordidas queimavam profundamente na carne, independente da couraça de metal. Com a violência e força, os dois braços foram arrancados:
– MALDITOS! – os pedaços inertes de carne desceram bruscamente em suas goelas, dilacerando totalmente o interior.
– Parabéns, por ter chegado aqui... – a bruxa se levantou por interesse.
– Balbero... – cuspi no chão em rever a demônia que conhecera meus antepassados.
– Victório Anthony... Creio que já sabe o que quero, não?
– Nunca entregarei para você! Minha coroa é mais preciosa que minha própria vida!
– Vamos ver se você tem tanta garra assim depois de enfrentar os meus soldados... – alguém surgiu no canto direito. – Minerva...
– Então aí está você, miserável! Colocar seu próprio filho nisso!
– Aquela peste não devia ter nascido!
– O que disse?! – das amputações, novos braços muito maiores surgiram, com mãos gigantes que tocavam o chão. – Você vai se arrepender!
– Não tenha tanta certeza... – seus olhos ficaram amarelos e o impulso lupino fora novamente lançado. A força da distorção preenchia todo o salão e me sufocava, me fazendo perder a noção de espaço.
– Repetitiva... – me apoiei sobre o braço esquerdo e levantei a mão direita contra ela. – Aqui eu estou livre para assinar a sua sina, maldita...
Lanças negras, finas como agulhas, brotaram do chão, empalando minha inimiga. Ela gemeu por mais alguns instantes, se debatendo. Aproximei-me e esmaguei-lhe o crânio com meus longos dedos.
– Vamos, mande mais! Eu quero mais! Vou mostrar para você que não há empecilho que se aponha a mim! – Balbero pendeu a cabeça para o lado.
– Lord Dri... Venha a mim. – cerrei levemente os olhos por indignação, vendo ele aparecer da abertura da esquerda.
– Como sempre, demônios são lixo em se tratando de seus meios sujos...
Lord Dri estava vestido de armadura e empunhava uma espada longa. Senti que aquelas armas estavam impregnadas de magia para melhorar seus atributos. Como um nobre cavaleiro, ele correu em direção a mim.
– Não brinque comigo Balbero! – com a força do pensamento, ergui o lord no ar antes que se aproximasse mais. Olhei fixamente e deixei meu terceiro olho se abrir. – Sua magia é forte, mas nem tanto!
Desfiz os encantamentos e, com um toque, desmanchei a armadura e a espada com facilidade. Fechei os olhos, Lord Dri desmaiou e o coloquei no canto, atrás de mim.
– O que tem agora para mim bruxa das trevas?! – mirei os dedos da mão direita na direção da imagem de Balbero e ela sumiu. Em seu lugar, ouvi um barulho de vidro se quebrando. A fumaça do narguilé cessou. Bufei de raiva. – Maldita, onde se esconde?!
Havia dois caminhos para seguir, pensei por um instante e segui meus instintos, quebrando a parede ao meio, revelando uma nova saída. Segui por aquele caminho e saí num salão muito maior e amplo. Nele havia um corredor que passava por um grande círculo e depois subia uma longa escadaria. Ao longo dele, podia se ver várias chaminés que impregnavam completamente o lugar com preparados mágicos e entorpecentes. Senti meu corpo formigar, perdendo parte da força. No topo, um trono de ouro puro, com aquela mulher de três metros sentada em cima dele. Flutuando no ar, um de cada lado, haviam duas pessoas, uma era Cris, completamente gelado e a outra eu não conseguia ver direito. Do trono emanava uma aura diabólica, não era ilusão, Balbero estava ali:
– Se assim deseja, venha enfrentar a última peça do tabuleiro que preparei especialmente para ti, desafeto nojento!
No centro do círculo, alguém com um capuz me esperava. O cheiro dela, uma mulher, destoava da fumaça viciante. Seus olhos eram vermelhos, os caninos eram salientes e sua pele era cinza.
 
 
– Eu quero o seu sangue, Victório! – pela voz, pude reconhecê-la.
– Morticia! Espere, você está diferente!
– Recebi a visita de meu pai...
– Tomaste sangue de demônio?! Droga! O que você tem na cabeça?! Eles podem te usar para qualquer coisa enquanto o mal toma conta de você!
– Eu sou assim, querido... – não havia como refutar o controle de Balbero, Morticia viria para cima de mim com tudo.
– Morticia! – seus passos em minha direção me queimavam, eu sentia uma dor excruciante.
Ela surgiu na minha frente e me pegou pelo pescoço, apertando-o com força. Da minha mão direita um olho surgiu, compelindo a tensão contra ela. Morticia me jogou do outro lado do círculo, antes que eu terminasse de cair ela voou sobre mim e me chutou para baixo. No chão ela chutou mais e mais vezes. Não tive escolhe, tive de liberar um pouco de luz.
– Me desculpe... – os raios luminosos queimaram lhe um pouco da pele, afastando-a de mim.
A minha energia estava sendo drenada pelo baixo inferno e parei de brilhar. Levantei-me, Morticia se recuperou rapidamente e vinha me atacar com muito mais fúria gerando redemoinhos ao seu redor, tentei me proteger e levantei do chão novas lanças negras. Aquilo não era o bastante para detê-la e elas se desmancharam perante sua presença raivosa. A ventania se transformava em tempestade, rasgando minha couraça metálica e decepando minhas asas e cauda. A dor era inominável:
– Pare! Não me obrigue a te atacar! – ela não me ouvia.
 
 
Levantei a mão esquerda e um olho se abriu em sua palma. Diferente do outro que compele, este absorve e não qualquer coisa, precisamente energia ruim e pesada. Mirei o olho em Morticia e lhe drenei todas a forças, alio vampiro era eu. Ela tentou aumentar a intensidade, mas não havia para onde correr, os longo dedos fecharam Morticia em minha mão.
– Você é forte... Se eu não estivesse com pressa... Talvez lhe desse a oportunidade de usar todos os poderes... – deixei-a no chão e me aproximei da escadaria.
Consciente do estrago que havia feito me dirigi para Balbero que estava excitada com aquelas cenas, apertando fortemente os braços de seu trono de ouro que ficaram amassados. Meu corpo, principalmente minhas costas, sangravam muito, por mais que eu quisesse, era difícil curar aquelas feridas causadas pela força demoníaca. A mulher de três metros se levantou e bateu palmas no meio do silêncio infernal.
– Parabéns! Vejo que continua poderoso!
– Eu só vou dizer uma vez: LIBERTE O CRISTIAN! – gritei com o resto de força que me restava.
– CALE-SE! – o lugar inteiro tremeu. – Não diga mais uma palavra! Você está em meus domínios, eu dou as ordens. E no momento, você não está em condições de reclamar. – ela sorria por debaixo do adereço de ouro que lhe cobria a face.
– O quê?! – com um movimento ela levantou o rosto da outra pessoa. – En’hain! Como pode sua...
– Quieto! Ou matarei os seus dois meninos! – eu arfava de raiva. – Agora sim, entregue a sua coroa!
E agora? O que eu poderia fazer? Aquilo não era apenas uma coroa, era a chave do mundo que eu protejo...
– Hahahah... – comecei a rir sem parar. – Hahahahah...
            – Perdeste o senso? Matarei os seus amigos! – lancei-lhe um olhar louco e penetrante.
            – Você realmente acha que eu a entregaria sem lutar?
            – Não ous... – Balbero começou a vomitar o seu próprio sangue podre.
            – Hihihih... Você não sabe com quem mexeu Balbero... Sou um guardião do meio, alguém que vive no limiar das trevas e da luz. Normalmente eu sou gentil, pondero sobre o que estou fazendo e resguardo o meu lado sombrio. Mas agora eu estou cansado, vou deixá-lo assumir completamente as minhas vontades...
            Flutuei por um instante, caindo no transe, apagando completamente a minha luz interior. Meu corpo foi tomado pela treva, crescendo e crescendo, assumindo a minha forma mais terrível. De meus ombros surgiram duas cabeças e das costas outras duas. Cada uma com uma máscara. As dos ombros eram vermelha e branca e as outras duas eram azul escuro e negra. Do alto da cabeça do meio, que portava a máscara dourada, uma coroa reluzente brilhou, despontando de dentro da carne. Os pescoços ficaram longos e novas asas cresceram muito maiores que as anteriores e olhos, vários olhos, olhos por todos os lados se abriram, sugando as forças diabólicas de Balbero. O bater de asas foi estrondoso, o pequeno universo criado pela bruxa se desfazia com o ímpeto de seu movimento. A máscara dourada começou a rachar e seus pedaços vieram ao chão. A minha face, a minha verdadeira face, estava amostra. O pescoço do meio se esticou até Balbero, fazendo com que minha face encarasse-a e, com voz dissonante cinco vezes multiplicada, falou:
            – Bem vinda ao mais terrível dos pesadelos...
            – Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh...

...
            Ainda tonto, fui acordado por En’hain.
            – Gunshin! Precisamos sair daqui! Isto está desmoronando!
            – ... – não respondi.
            – Acorde!      
            – Cristian?!
            – Quem?
            – Cristian, um menino de três anos, você o viu?
            – Não... – me levantei e olhei para o lugar em que estava. Tudo parecia uma caverna agora, todo mal havia sido varrido de uma vez.
            No local do trono, havia uma porta esculpida em pedra que estava entreaberta. Não o vendo, corri para lá. Diferente do salão anterior, este continuava escuro, tomado pela angustia e pelo desprazer. Parado, ele encarava o escuro, o meu pequeno rapaz. Peguei um pouco das trevas do lugar e pude ver o que havia naquela escuridão: um selo. Eu desconhecia o desenho, não era magia nem humana, nem de meu mundo e muito menos era magia demoníaca. Era algo fraco, porém reluzente e persistente. Ouvi a voz do tio San na minha mente:
            – O selo precisa ser fechado...
            – Mestre, o que é isso?
            – Você sabe o que é. Seu nome não deve ser dito... – senti o meu corpo gelar.
            Voltando a mim, ordenei:
            – En’hain, leve Cristian daqui agora! – o barman obedeceu sem demora.
            Cristian relutou em seus braços, mas foi levado. Passando pelo portão de pedra eu o fechei.
            – Gunshin? – En’hain se assustou com a porta. – Gunshin!

...

 

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