En’hain e
Gurei estavam sentados em uma mesa na Toca dos Gatos, sem falar um com o outro,
até En’hain interromper o silêncio:
–Até agora
não consegui entender essa vida que levo... Será que existe razão pra tudo
isso? O tempo todo, em casa, na rua, entre amigos... Em todo lugar me sinto
odiado pelas pessoas, odiado pelo criador. Tudo isso realmente importa?
–... –
Gurei ficou calado.
–Me diga,
por que tudo está do avesso?! Porque eu me importo e eles não? Só tenho vivido
essa vida na miséria, tentando apenas ficar em mim, tentando esquecer essas
sensações ruins que me consomem e que me são causadas pelas outras pessoas. Não
consigo fugir disso, nem me tornar mais forte. As dores continuam, meu rosto
continua seco, minha alma continua mutilada...
–Vou lhe
dizer a mesma coisa que o criador me disse: “Problema seu”.
–Como se eu
já não soubesse disso! Como se eu não continuasse me sentindo uma formiga sendo
esmagada com pura indiferença! Se isso realmente importasse, se realmente
houvesse amor nisso tudo, porque então essa flagelação continua? É sempre a
mesma coisa, dia após dia, nada muda pra melhor, só piora. Não conheço mais
ninguém... Pior! Ninguém me conhece...
–Vai lá pra
fora e mostra a cara, se você quer tanto assim que te conheçam!
–E o que mudaria?
Eles continuariam zombando de mim. Essas sensações não mudam pra melhor, só
pioram. Não há forças para nada dentro de mim, continuam vazias. Sempre estou
exaurido, não tenho forças nem pra sair daqui. Sinceramente, não há nada para
fazer lá fora. Tudo sempre confuso, as pessoas sempre me entristecem...
–E porque
você deixa?
–Eu deixo?
É justamente quando eu tento ter alguma esperança de seguir o meu caminho que
isso acontece! Quando eu penso que dei um passo firme, mesmo que cambaleando um
pouco, levo uma rasteira. Só porque os machucados não aparecem não quer dizer
que eles não estejam em carne-viva. Seria bom se essa faca cravada nas minhas
costas fosse retirada, porém, ela entrou fundo de mais, nem o criador tenta
tirá-la daí. Porque ‘eles’ fizeram me parte de tudo isso?
–Se mate,
então!
–Nem para
isso tenho forças... Queria apenas ficar sozinho, que essas sensações malditas
sumissem. O rombo que fizeram no meu peito continua expondo meu coração, me
deixando a mercê de qualquer um. Já pensei em lançar pragas aos desgraçados,
mas nem isso vale à pena. Seguir o caminho é minha única opção. Se ao menos
pudesse fazer isso dormindo...
–...
–Assim eu
poderia ficar longe de tudo, esperando que não haja mais ninguém para me
perturbar e que finalmente eu pudesse acreditar nisso tudo, mesmo que realmente
fosse tudo uma grande mentira. Tento entender pelo que esses malditos heróis
lutam: se por egoísmo ou por essa mentira suja. Eles agem como ignorantes que
persistem no mesmo erro que todo mundo gostaria de errar.
–Você odeia
aquilo que ama? – Indagou.
–Talvez eu
ame aquilo que odeio... Não sei. Sei que nem me lembro direito o porquê de ter
entrado na faculdade de arquitetura. Possivelmente fosse a premissa de um sonho
de tentar mudar o mundo construindo ele do jeito que eu acho melhor... Nem
assim consegui me importar. E quando o dinheiro havia acabado então? Desisti do
curso sem nem dar noticias do que havia acontecido.
–Então você
vive dizendo que faz faculdade de arquitetura quando na verdade...
–Eu sei, é
hipocrisia minha. É que eu achei que aquelas pessoas que estudaram comigo
fossem legais por aquela ter sido uma grande época em nossas vidas. Me enganei
feio! São elas as mesmas pessoas que eu sinto que me odeiam, que são
indiferentes comigo, enfim... Depois que você não faz mais parte da vida deles,
eles sequer mandam alguma resposta de volta. E o que é pior, só eu me sinto
assim, só eu sou o desprezado. Não tenho mais ninguém...
–E a sua
família? Onde ela está?
–Que
família? Eles nunca se importaram se eu estava feliz ou não. Sempre fui uma
ovelha negra desprezado pelos outros por sentir essas sensações que me impedem
de ser como eles. Sempre a mesma coisa, eles me desprezam. Quando entrei na
faculdade não tive apoio nenhum, o dinheiro sempre foi pouco, tiveram que fazer
sacrifícios para pagar o meu material. Mas nenhum deles perguntou como eu me
sentia. Eles queriam que eu continuasse e ainda assim não perguntaram como eu
me sentia. Deixaram de lado, todos eles... Sempre tentei ser eu, no entanto,
nem eu sei quem sou. Eu queria ser alguém que não existe.
–...
–Nem
adianta me fazer essa cara de “seja quem você é” que não adianta, eu continuo
não existindo. Sou puro faz de conta...
Akai sai da
cozinha comendo biscoitos:
–Nyaaa! Vou
lá fora...
–Está bem,
pode ir... – Akai saiu.
–E ele? –
Perguntou Gurei. – O que me diz dele?
–Um dia ele
vai beber meu sangue e esquecer-se de mim...
–... –
Gurei pensou um pouco. – Não foi você que disse que nunca faria isso?
–Não
entendeu ainda? Sou tão azarado que meu sangue está sempre vertendo pela minha
pele quando ela é rasgada pelas minhas escamas... Uma hora uma gota vai
terminar de me desgraçar por completo. Este é o dia que mais temo na minha
vida... –Vai ficar parado esperando
isso acontecer?
–E que
escolha eu tenho? Só posso continuar meu caminho tentando não lembrar que um
dia as coisas que tanto gosto vão quebrar e as pessoas que eu tanto amo não vão
morrer.
–Você está
fudido!
–Uma hora
esta mão que finge que me afaga, que finge que isso me basta, vai perceber que
eu nunca vou ser feliz de verdade, que eu nunca vou ser completo, que pra mim
tudo me faz infeliz...
–...
–Uma hora
vão se cansar de mim e se livrar de uma vez por todas deste brinquedo quebrado.
Só posso esperar que isso aconteça... Nada mais.
Gurei se
levantou, se espreguiçou como bom gato e disse:
–Vamos
arrumar o bar, já está quase na hora de abrir.
–Sim...