Um ser de Ébano
renasce
“A única coisa de que
me arrependo, é de nunca ter sido amado...”
...
Thagir e
Kullat saíram do Labirinto Virtual e logo foram transportados repentinamente
para a Estrela Escura onde o arauto do Mestre Caçador estava. De volta ao salão
do centro de energia do colosso espacial, os castelares observavam os doze Caçadores
Sombrios, seis de um lado, seis do outro, todos com as mãos para trás e o rosto
baixo. O mago estava no chão, não se movera, estava com um ar estranho,
estático e imóvel. Ao se aproximarem, notaram que no chão estava uma imensa
poça de sangue e um fluido negro que gotejava constantemente do Ilusionista, o
grande observador atrás do arauto. Isso preocupava os Senhores de Castelo, o
que eles fariam agora que o arauto estava morto? Uma voz que trovejava por todo
o salão quebrou o silêncio:
–Me
entreguem a espada!!!
–Quem disse
isso?! – Indagou Kullat
–Creio que
este seja o Mestre Caçador... – Thagir continuava com o olhar fixo na direção
do mago.
–Huuunnnhuuunnnhuuunnnnhuuunnn...
Huuunnnhuuunnnhuuunnnnhuuunnn... – Os Senhores de Castelo reconheceram o som
daquele dia em que haviam chegado à ilha de Ev’ve.
–Quem é
você, mostre-se! – Exigiu o pistoleiro de Newho.
–Eu...
Sou... Ébano!!! – O grande grimório usado pelo arauto flutuava no ar ainda
aberto e se fechou, na capa um grande olho observava os dois castelares.
–Então era
aí que você estava esse tempo todo! Realmente, eu ainda não havia desconfiado
de um objeto... – Thagir parecia despreocupado.
–O que é
isso? – Perguntou Kullat.
–Este...
Esta coisa é... Um comedor de sonhos...
–Mas, eles
não estão presos na dimensão do meio? Para que serve a espada e toda essa
movimentação de corpos e estrelas?
–Huuunnn...
Como pode ver, estou preso e com a espada do infinito poderei finalmente
sair!!! – Aquilo ecoava estrondosamente.
A vibração
da espada estava no máximo e foi puxada para fora da estrela junto com o livro.
Todos os Caçadores Sombrios recitavam as mesmas palavras antigas compelidos por
uma força externa anormal que Kullat e Thagir também sentiam. Os antigos chamam
essa energia de “O coro de anjos”, dezenas, centenas, milhares, milhões de
seres recitando o mesmo cântico. Os reféns deviam estar sobre a influência do
livro. Quando essa melodia começou a tocar, as Estrelas Escuras finalmente se
iluminaram, vibravam em uníssono, junto à ilha de Ev’ve. Era agora, o tempo e o
espaço estavam se rasgando e a dimensão do meio se abriu. De dentro da fenda,
uma massa disforme e escura tentava se por para fora aos poucos. O que fazer?
As armas haviam acabado, o canhão de potência estava com a bateria gasta depois
de tantos tiros, o novo cajado de Jord não poderia ir contra um ser capaz de
comer a realidade. Algo horrível estava saindo e iria começar a devorar o
multiverso! Thagir se concentrava e tentava lembrar-se daquele dia em Newho,
ele estava esquecendo-se de algo e sentia que sua memória estava voltando.
Olhou para todos os caçadores e reconheceu algo familiar:
–Dânima! –
Thagir estava livre do feitiço. – Meu amor, acorde!
O Senhor de
Castelo estava parado diante da grande arqueira dos Caçadores Sombrio, que não
se movimentava:
–Thagir,
você tem certeza, ela não se parece com a sua esposa...
–Eu sei que
é ela... Naquele dia, ela era o segundo Caçador!
Kullat
estava incrédulo:
–Como poderia ser? Dânima nunca
faria uma coisa dessas! Ela nem é guerreira!
–Meu amigo, ela é de Newho! Veja
isso... – Thagir tirou a parte da roupa de couro que cobria o rosto, mostrando
algo incomum.
–Isto é... – Kullat se aproximou
para ver. – Uma tatuagem fantasma!
–Sim, tudo está fazendo sentido
agora! É assim que o comedor de sonhos controla os Caçadores Sombrios. Deixe me
ver... – Thagir sussurrou algo no ouvido da esposa e a tatuagem desapareceu,
fazendo a rainha de Newho desmaiar, caindo nos braços de seu marido.
–O que você fez?
–Durante a luta que tivemos no
alto da torre do castelo de Newho, fomos surpreendidos por uma pequena boneca
de cachinhos dourados...
–Aquela usada por Inok, certo?
–Certíssimo! Dânima não se mexia
diante dela e eu aproveitei para derrubá-la sem maiores esforços. Para meu
espanto, aquela boneca medonha começou a falar uma única palavra repetidas
vezes: “Dentro, dentro, dentro”...
–Dentro da boneca?
–Isso mesmo! Dentro dela havia um
papel e uma jóia. Quando tentei ler o que estava escrito, as letras passaram
para a minha mão e subiram, direto para a minha mente! É isso! Os Caçadores
Sombrios estavam mandando uma mensagem, nela dizia sobre N’quamor, o
contra-feitiço para a tatuagem fantasma e...
–E o que mais homem?! Não podemos
perder tempo, o multiverso está sendo desintegrado lá fora!
–Dânima sabe o que precisamos
fazer, ela precisa acordar! Acorde meu bem! Acorde! – A rainha não respondia. –
Eu te amo...
Como um sopro de vida, as
palavras de Thagir ecoaram nos ouvidos de Dânima, despertando-a de seu sono:
–Ahn? O quê? Onde estou? Thagir?
Você está chorando? – A esposa passou carinhosamente a mão na barba de seu
marido que a apertava fortemente, e ele segurou em sua mão em sinal de
resposta.
–Dânima, meu amor, nós precisamos
agir! – Thagir ajudava sua bela esposa a se levantar enquanto ela ia retomando
a figura serena que o povo de Newho tanto amava.
–Sim, estou me lembrando...
Precisamos dar corda nas engrenagens do arauto!
–Fruto da magia e da
tecnologia... – Thagir olhava para Kullat, tentando diminuir seu espanto.
Os três se aproximaram do arauto
e lhe tiraram a capa que cobria o corpo, mostrando um peito feito de vidro,
completamente preenchido por rodas dentadas da mais fina espécie, delicadas e
frágeis como flocos de neve. No lugar do coração havia um relógio, havia
marcações de ano, mês, dia, hora, minutos e segundos; com uma inscrição por
debaixo dos ponteiros: “A única coisa de que me arrependo, é de nunca ter sido
amado...”. Dânima olhava para o mecanismo tentando se lembrar do que devia
fazer e começou a contar ao marido o que havia acontecido quando fora
sequestrada:
–Me lembro de estar com nossas
filhas, eu estava bordando e elas lendo alguns livros. De uma hora para outra
estávamos num lugar diferente, que parecia um grande cilindro onde cabia
quilômetros de chão, florestas e rios... – Thagir prestava atenção na esposa. –
Todos que conheço em Newho estavam lá, como éramos prisioneiras importantes,
fomos levadas para outro lugar, onde conheci o arauto...
–Continue querida, você está indo
muito bem... – Thagir tentava animar a esposa.
–Ele era gentil, nunca nos
obrigou a nada... Mas um dia o livro disse que me queria, e o arauto se
revoltou contra ele. O livro desregulou seu suporte de vida como retaliação e o
deixou sofrendo no meio do chão, quase sem respirar. Ele disse que não queria
ser visto naquele estado, eu insisti e me aproximei; e pude ouvir algumas notas
musicais que me lembraram aquela velha canção que sua mãe cantava para nossas
filhas. – Dânima começou a sussurrar a velha canção, tentando se lembrar,
Thagir então pegou em sua mão suavemente e começou a acompanhá-la...
Aquela bela canção parecia surtir
efeito, as engrenagens reagiam, se movimentando aos poucos. O arauto abriu os
olhos:
–Sistemas em baixa... Tempo de
funcionamento acabando... A espada do infinito não serve para destruir, apenas
para criar... Ébano possui inteligência... Ébano não possui coração... Vão
atrás de Kullat...
Os reis de Newho perceberam que o
Senhor de Castelo de Oririn não estava mais com eles:
–Kullat!!! – Thagir gritou
furioso.
–Meu amor, vá atrás dele... Eu
vou ficar bem.
Thagir olhou para Dânima no fundo
dos olhos e tirou um pedaço de papel do bolso, o mesmo que estava dentro da
boneca, e entregou a ela:
–Cuide de nossas filhas... –
Thagir ia sair e se lembrou de mais uma coisa. – Nunca mais vou me esquecer
disso.
E os dois se beijaram, com a mais
bela das ternuras, um amor verdadeiro, cuidado com requintes do destino, onde
as duas almas, em qualquer lugar do multiverso em que estivessem, se
encontrariam novamente para serem, de novo, uma...
...
Transmissão continua...