quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Crônicas dos Senhores de Castelo: Fanzine - O Filho do Fim - Capítulo 9


Cidade Baixa



            Naqueles dias, a chuva ácida estava forte, boa parte do material atingido derretia e era drenado no subsolo por grandes máquinas aparentemente imunes a corrosividade, blindadas por algum material vítreo que brilhava com as poucas luzes que ousavam penetrar a escuridão. O barulho delas durante aqueles tempos sombrios não deixava ninguém dormir, sempre girando algo que lembrava uma broca, perfuravam os canos quando ficavam entupidos para que o fluxo do material derretido continuasse a fluir para a grande indústria que a Irmandade Cósmica instalara no planeta que roubara – a Cidade Baixa. Esse lugar era medonho, cheio de prédios atrás de prédios com mais de trezentos metros de altura sem praticamente nenhum espaço entre eles, um lugar literalmente sufocante. Ele parece ser perfeito para abrigar populações, mas não se engane. O que realmente mora lá costuma devorar pessoas...

...

            Pilares e Iksio não encontraram um bom abrigo, ainda separados do resto do grupo, permaneciam vagando pelas áreas ainda não afetadas pela chuva ácida. Iksio era espreitado pelo monstro de lixo e esperava que ele o deixasse em alguma hora, ou que ele mesmo se lembrasse de algo que pudesse ser feito para afastar o animal descomunal. Já Pilares tramitava por entre os entulhos segundo seus instintos, evitando voltar para onde os seres famintos estavam: ‘Aquilo cheira a carne podre!’, pensava ele, ‘Isso porque estou usando filtros de ar!’. De fato, o lugar tinha um quê de enjoativo que fazia o estômago do Senhor de Castelo se remexer:
            – Droga! Por que eu fui dar tudo o que trouxe pra ele! Agora quem está com fome sou eu! – reparando melhor, Pilares percebeu algo interessante a sua frente. – Será possível? Ou eu estou delirando?
            O castelar se aproximou daquele lugar luminoso, que tinha algumas poucas pessoas rindo, vendendo alguma comida e falando sem parar e constatou que era realmente o que pensava:
            – Um circo! – E reparou na palavra que havia dito a si mesmo. – Um circo?
            Um homem estranho, de altura extremamente baixa e membros curtos que não lhe permitiam andar direito, andava ‘rebolando’ e foi falar com Pilares que não entendeu nenhuma palavra do que ele dissera. Ele parecia estar convidando-o para entrar no circo, o que o Senhor de Castelo recusava veemente. Então, saindo de dentro de um pequeno engradado, outro homem, de aparência muito esguia e comprida – devia ter uns três metros de altura e ser mais fino que o braço forte de Pilares – surgiu na frente do castelar. Da mesma forma que o baixinho em forma de bola, ele parecia chamá-lo para dentro do circo, chegando a tocar levemente em sua mão para guiá-lo. Pilares não entendeu nada e, temendo acontecer algo ruim como da primeira vez, jogou uma bomba de fumaça no chão e sumiu. O entretenimento gratuito fez os dois estranhos baterem palmas, ou quase isso, o alto e magro batia bem devagar e o pequeno e roliço batia as mãos várias vezes, sem que elas se encontrassem.
            Pilares com certeza achava aquilo estranho, no meio do escuro aparecer um lugar bizarro como aquele e, tentando se lembrar do rosto dos esquisitos, percebeu que só havia uma expressão em suas faces: um semblante liso com olhos e boca pintadas com alguma tinta que já ficara desbotada pelo tempo. E concluiu:
– Eles não tem rosto!
Pilares ficou por ali, sem querer ser visto por ninguém, como um assaltante, espreitando e reconhecendo a região.

...

            Iksio também acabou por conhecer uma nova parte do planeta. Na última fuga do monstro de lixo, o Senhor de Castelo foi parar nos limites da Cidades Baixa. Não tinha como perceber a imensidão do lugar, pois as nuvens estavam baixas e continuavam espessas. Porém, havia alguma luz para iluminar o breu noturno e decidiu pular a cerca que separava aqueles prédios da zona do lixo:
            – Pelas águas límpidas de Arthúa! Como um senhor distinto como eu, que sempre evita fazer algo errado, está pulando uma cerca?! Iksio, você está me saindo muito arteiro! – o castelar falava consigo mesmo, enquanto continuava andando cidade adentro. – Quando sairmos daqui terei novas aulas de etiqueta com a senhorita Liliana de Tianrr... Ah, Liliana, minha amada e doce donzela Liliana, da alta sociedade urbana de Tianrr, que falta você me faz neste mundo arrepiante! Tu és a luz que ilumina meus esforços! Oh, se olhastes para mim ao menos uma vez! E percebesse que posso ser um homem forte, como um Senhor de Castelo, e ainda assim ser gentil e educado como tanto sonhas. Iksio! Recomponha se! Um homem de etiqueta fina nunca deve ter devaneios como este e demonstrar tamanha fraqueza! Ah... Dane se, não tem ninguém aqui!
            O castelar ouviu algo passar por trás dele, o que o fez sentir seu corpo gelar:
            – É... Bem... – ele tentava recompor-se para demonstrar seus hábitos refinados novamente. – Desculpe-me se pareço rude e louco. Estive correndo e me escondendo de uma fera maligna que me perseguia por onde quer que eu fosse e...
            Iksio levou um susto, quem estava diante dele era sua amada Liliana, vestida da mesma forma com a qual ele se lembrava da última vez em que eles se viram. Um corpete azul lindamente bordado em violeta, uma saia recatada de alta costura com uma renda brilhante, um chapéu diminuto para a cabeça com uma armação metálica que se retorcia delicadamente envolta da cabeça em tons arroxeados; sua face suavemente triangular era branca e aveludada, o nariz e a boca eram menores que as comuns e os olhos, negros como a noite, tinham íris grandes que não deixavam transparecer o branco dos olhos. Seus dois pares de braços, com luvas num tom azul quase branco que iam até o cotovelo completavam a visão do Senhor de Castelo:
            – Desculpe-me, seja lá quem você for, você não pode ser Liliana... – Iksio apontou o dedo na direção da moça e escreveu no ar com a escrita mágica. – “Reconhecimento”!
            Os sentidos do castelar se afloraram novamente e ele pode ver com clareza, a criatura não tinha forma certa, era um construto que mudava de forma e que se movimentou enquanto Iksio o olhava através de outros espectros luminosos. Retornando do estado de transe, o Senhor de Castelo se deparou com algo mais desconcertante, a criatura artificial assumira uma forma um tanto peculiar:
            – Pelas Cascatas da Purificação! Sou eu... de cuecas!
...

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Devil’s Drink 22 – Eles...

Bem vindos os novos clientes Nanda Roque e Sérgio Carmach! Obrigado por integrarem a clientela deste humilde Bar! ^^
Ah, e um obrigado especial ao Ulisses Góes, também cliente do bar, por causa dele, as ondas de rádio estão me deixando sem dormir de noite... ^^'
E aos autores originais de Crônicas dos Senhores de Castelo, G. Brasman e G. Norris, por terem criado o personagem Iki-Dao no segundo livro - Efeito Manticore. Me identifiquei muito com ele, com sua dualidade de pensamento entre os irmãos. Então acabou saindo esse drinque... Divirtam-se! \o/
Devil’s Drink 22 – Eles...



            Dor de cabeça... As dores eram fortes, En’hain as sentia latejando, praticamente explodindo sua cabeça. O barman estava zonzo, talvez por que ele tenha dormido durante três dias. Mas provavelmente era por outro motivo. Ele não sabia o que fazer e foi descendo as escadas lentamente, quem sabe alguém reparasse nele e o ajudasse. Ficou ali, olhando o movimento do bar, poucos degraus abaixo do topo da última escada. Olhava para todos os lados, não conseguia ver direito. Sua miopia havia voltado.

            En’hain tentou escutar e ouviu a voz de Gurei, o neko de pelos cinza-azulados e tapa-olho no rosto que tanto o irritava. O tom de voz parecia diferente, ele estava rindo:

            – Não acredito! É sério?!

            – Seríssimo! – uma voz forte e desconhecida falou.

            “Será que tem alguém novo no bar?”, pensou En’hain, que acabou percebendo outra coisa: “Será que eu fui substit...” A palavra morreu em seus pensamentos diante do choque.

            – Ele não tem a mínima noção do que está fazendo aqui! – continuo a voz estranha.

            – Ele é patético assim mesmo. Se bem que agora ele não está mais parecendo o que era... – Gurei ficou pensativo por alguns instantes. – Não! Que ele se foda! – disse com deboche.

            “De quem eles estão falando? Quem é esse outro?!”, continuava a pensar.

            E a conversa prosseguia:

            – Então Nox’en, me conta mais sobre os podres do dorminhoco... – En’hain sentiu sua espinha gelar e sua garganta travar, engolindo a seco.

            – Vocês dois, calem a boca! Já estão me enchendo! En’hain isso, En’hain aquilo... Vocês não tem nada melhor pra fazer! – disso uma terceira voz, também desconhecida.

            – Tinha mais isso aí... – falou o tal Nox’en.

            – É mesmo! Hahah... Ele sempre faz desse jeito quando está com raiva.

            – Por que vocês estar falando assim de En’hain? – disse Sasha, o lobisomem da casa.

            – Esses dois estão se divertindo à custa dele que ainda está dormindo... – disse o segundo desconhecido.

            – Medíocres...  Eles são medíocres!– retornou a falar o primeiro em tom de discurso.

            – Hahaha... Se eu soubesse que você tinha um lado desses, eu teria te levado pra beber mais cedo. – Gurei ria tanto que não se aguentava. – Hahahah...

            – ...! – o segundo sujeito fez alguma coisa que tilintou um barulho metálico.

            – Ei! Larga essa faca! Me deixa em paz Lidi’en! – o primeiro estranho devia estar fugindo do outro.

            – Não fale mais assim dele! – En’hain ouviu o barulho da faca sendo cravada na parede.

            “Quem é esse que quer me defender desse jeito?”, no seu canto, os pensamentos de En’hain fluíam confusamente. Afinal, eles estavam falando mal ou bem dele? Ele ficou ali, ouvindo mais da conversa:

            – Rapazes! – era Lady Neko que falava agora. – Não briguem, vocês mal chegaram e já querem causar problemas?

            – Foi ele que me irritou, Lady Neko! Esse imbecil sem cérebro que não sabe o que faz e fica ridicularizando os outros... – seu tom era áspero e rancoroso.

            – E eu tenho culpa dele ser tão ridículo?

            – Aiai... Será possível que vocês não conseguem chegar a um acordo?

            – NÃO! – disseram os dois ao mesmo tempo.

            – Nossa... – Lady Neko, com toda a sua delicadeza, se sentiu acuada pela agressividade dos desconhecidos... E deu um belo tapa nos dois.

            – Brutamonte! – gritou Nox’en, enraivecido.

            – Por quanto tempo isso vai continuar? – disse Lidi’en, se acalmando.

            – Até você! Essa eu não esperava... – Nox’en estava contrariado.

            En’hain também se fez essa mesma pergunta e, em seguida, sua cabeça voltou a latejar. As dores foram fortes e ele desmaiou, caindo escada abaixo, assustando todo mundo:

            – En’hain?!

...

            Era de dia, pela manhã. En’hain sabia disso por que nesse horário os raios de sol batem diretamente na cabeceira da cama do senhor Gunshin:

            – Ele devia mandar fazer uma persiana...

            – Depois eu faço... Você está melhor?

            – ... – En’hain franziu os olhos tentando enxergar, fazendo cara feia por saber que era o sumido que estava ali. – Acho que estou...

            – Tome, aqui estão os seus óculos.

            – Obrigado... – finalmente ele conseguiu voltar a enxergar, ficando calado encarando o dono do bar.

            – Você já sabe?

            – Que fui substituído? Eu fiquei ouvindo os dois sujeitos ontem conversando com o pessoal como se eu já estivesse morto. – suas palavras eram pesadas por causa do ressentimento. – Eu pensei que finalmente tivesse encontrado um lugar onde eu deixasse de ser inútil. E tão logo eu passo mal já sou substituído...

            – En’hain?!

            – O que foi? Você já fez as minhas malas, não foi?! Estou ficando de saco cheio de tudo isso aqui, de não fazer parte disso... – ele encostou a cabeça em cima dos joelhos que estavam próximos ao corpo e virou-a para o outro lado, chorando.

            – Rapazes, entrem logo, antes que ele piore! – gritou Gunshin para os outros que estavam do lado de fora.

            En’hain estava curioso, quem eram aqueles que o substituíram? Ele virou o rosto para olhar e viu dois homens, de estatura mediana como a sua e que tinham exatamente a mesma altura. Pareciam gêmeos, porém, eram diferentes. Um tinha cabelo amarelo loiro perfeitamente penteado, olhos vermelhos, usava um avental do bar sobre uma roupa simples, uma camiseta e uma calça jeans azul que En’hain reconheceu como suas, do dia em que ele chegou ao bar. Sua expressão era como se quisesse pedir desculpas, sem coragem para dizer nada. O outro estava irrequieto, como se estivesse com raiva. Ele tinha cabelo castanho alaranjado, lembrando a cor do cobre polido, espetados para cima; usava um casacão de frio, o mesmo que Gunshin usara na noite de inverno do seu encontro com En’hain; por debaixo ele tinha o uniforme de barman da Toca dos Gatos – camisa branca, calça e colete pretos com uma gravata borboleta na cor vermelha. O primeiro decidiu quebrar o silêncio e começou a falar:

            – Eu sou Lidi’en... E esse é o Nox’en... – enquanto ele tentava encontrar as palavras certas, o outro simplesmente levantou a mão para dar um oi, sem dirigir a atenção. – Nós somos... O que nós somos mesmo Gunshin?

            – Personas interiores...

            – Sim, isso mesmo... Eu e Nox’en...

            – O burro vai na frente... – interrompeu o irmão.

            – Vai começar de novo?! Nem na frente dele você vai ser mais educado?

            – Não é você que gosta de ser educado? Então, eu quis dizer que o certo é você falar sobre você por último...

            – Eu só me complico... – Lidi’en colocou a mãos na frente do rosto, apertando as têmporas. – Então... Nox’en e eu...

            – Agora sim!

            – Pare de me interromper, caramba!

            – Eu não sou caramba! – os dois não paravam de discutir.

            – O que é uma persona interior, Gunshin? – perguntou En’hain, mais confuso do que nunca.

            – São partes de você...

            – Como assim?

            – Eles saíram de você...

            Gurei gritou do lado de fora do quarto:

            – Parabéns... Mamãe! – ele ria descontroladamente, chegando a chorar.

            – ...! – En’hain ficou sem palavras...

            – Você não é mais o último draconiano da Terra... – completou Gunshin, que batia levemente em seu ombro.

            – Por que comigo?! – ele não sabia o que fazer e começou a rir e chorar ao mesmo tempo... – Por quê?!!!

...

Crônicas dos Senhores de Castelo: Fanzine - O Filho do Fim - Capítulo 08


Nascemos para morrer



            Nina estava apreensiva, esperando que algo acontecesse. O Thagir vermelho não entedia a animação da garota, prédios de várias toneladas estavam em cima do Senhor de Castelo, não tinha como ele sobreviver:
            – Nunca pense isso de um Senhor de Castelo, bobinho! – a menina sorria docemente para o escravo pessoal.
            – Odeio quando você faz isso... – o caçador sombrio desconversava.
            – Ele está vivo, eu sei disso. Vamos lá! Pare de se esconder, não tem como você escapar de nós! – Nina colocou as mãos ao lado da boca para que o som ficasse mais alto.
            – Vejo que vocês não desistem tão fácil... – Dimios apareceu de repente, atrás deles.
            – Miserável, como eu não percebi você aí atrás? – o Thagir vermelho estava revoltado por ter suas habilidades de percepção superadas.
            – Então você está aí! – a menina batia palmas de contentamento. – Meu querido Thagir, use-o.
            – Como quiser... mestra. – o caçador sombrio ficou de frente para Dimios e liberou os poderes do Olho de Rudnaht, forçando o castelar a ver alucinações.
            Dimios resistia como podia e liberou uma onda sônica da Garra de Sartel que derrubou os adversários no chão:
            – Não me subestime! – gritou o castelar, agarrando o Thagir vermelho pelo pescoço depois de um salto com um movimento veloz que o deixou próximo ao inimigo.
            O Thagir vermelho estava preso, sem conseguir respirar. Nina estava atordoada no chão e Dimios continuava com o adversário na mão, apertando forte:
            – Não... Subestime... Você... – o caçador liberou uma espessa fumaça escura depois de se poder ouvir um estalo de ossos se quebrando.
            A fumaça preta tomou o lugar e sujou o capacete de Dimios que já havia soltado o Thagir vermelho. Do meio do breu, duas feras mutantes surgiram em disparada para atacar o castelar. Dimios se esquivou das garras da primeira fera e arranhou a segunda na barriga que caiu em cima da outra. Elas não ficaram paradas muito tempo e partiram para o segundo ataque, desta vez cercaram o Senhor de Castelo ficando uma de cada lado para atacar as duas de uma vez. Dimios ficou parado, observando seus movimentos esperando que elas começassem e quando foram pra cima dele, o castelar se aproveitou do ataque para derrubar as duas novamente. Desta vez as feras deformadas ficaram mais algum tempo imóveis no chão, estáticas, até explodirem seus corpos liberando toxinas extremamente venenosas. Dimios estava bem por usar a suit de sobrevivência que ficara completamente melecada com as tripas dos seres grotescos que havia enfrentado. Procurou pelos inimigos, mas sentia que eles fugiram para algum lugar. Ele tentou entender o que aquela menininha queria com ele, e ainda por cima acompanhada do Thagir vermelho, o inverso do rei e castelar de Newho de Curanaã! Dimios pensou bem e concluiu:
            –Eles já sabem que ele está aqui... Eles queriam informações! – Dimios cerrou os dentes, ficando com uma expressão de extrema raiva. Ele olhou para o monte de destroços que quase lhe caíram na cabeça e mandou um raio de maru destrutiva que levantou a poeira bem alto nos céus. – Desgraçados! Me usaram!
            O Senhor de Castelo virou-se para o outro lado e seguiu sua direção, pensativo: “Se você estivesse aqui...”

...

            Poderiam ter sido alguns segundos para o tempo normal, mas as alucinações de Dimios foram piores do que aparentaram. Em sua mente, lhe vinha os momentos em que seu ex-parceiro castelar estava morrendo. No começo, quando eles eram guerrins, Dimios era diferente, seu sorriso alegrava qualquer pessoa que estivesse com ele. Ele era determinado, extrovertido, batalhador. As lembranças da morte de seus pais que deixaram-no órfão muito cedo, com apenas cinco anos, era algo que ele não aparentava. Mesmo sonhando diversas noites com as pessoas que iriam morrer em alguns dias – seu dom natural –, isso não lhe incomodava, tinha ao seu lado o melhor amigo que alguém poderia ter. Eles cuidavam um do outro, nos piores momentos, nas piores horas. Em batalhas, desvantagens não existiam, cada um sabia bem o que o outro iria fazer sem dizer uma palavra, anulando qualquer adversidade. Eles estavam seguros de suas vidas. Naquela época, Dimios não tinha a Garra de Sartel no lugar do braço esquerdo...
            Dimios continuava caminhando, e a cada passo, sentia sua mente quebrar aos poucos. Queria colocar a mão na cabeça para diminuir a dor, mas o capacete de vidro não deixava, o que o irritava mais ainda. Respirava profundamente, tentando esquecer o sangue que estava escorrendo pelo chão por causa da chuva que fazia naquele dia e toda vez que ele piscava os olhos, as imagens de suas mãos ensanguentadas eram perfeitamente visíveis:
            – Por quê?! Por que você tinha que morrer daquele jeito seu estúpido! Eu não pedi pra você me salvar, droga!!! – ele gritava desesperadamente.
            Uma voz, a mesma voz do seu parceiro, pareceu lhe falar ao ouvido, do mesmo jeito que naquele instante em que ele estava atordoado com a cena que presenciava. A voz lhe dizia:
            – Nós nascemos para morrer...
            A mente de Dimios simplesmente se apagou, com a Garra de Sartel vibrando energeticamente com alto intensidade. Ele veio ao chão, meio desacordado, numa espécie de coma, ele via as coisas se mexerem, mas não conseguia se mexer. Alguém se aproximou e começou a arrastá-lo dali...
...

            Em mais um delírio, Dimios teve um sonho, era o primeiro que tivera em muito tempo. Nele, ele via a foice da morte pender sobre as cabeças dos Senhores de Castelo. Um deles iria morrer...
...

            Desta vez, quem acordou em algum lugar foi Dimios. Estava num ambiente fechado, aparentando alguma organização. Seu coração estava disparado e a suit de sobrevivência havia sido removida. No ar, pairava o cheiro de alguma comida boa sendo preparada, num canto do recinto uma criança de cabelos negros com manchas vermelhas olhava curiosa para ele. Vendo que o homem havia acordado, chamou o irmão:
            – Vaik! Ele acordou! – o menininho saiu correndo.
            O garoto mais velho entrou algum tempo depois trazendo um prato metálico com uma sopa que cheirava muito bem, deixando Dimios constrangido por aquilo fazer a barriga dele roncar. Sem dizer nada, ele tomou o prato a sua frente, segurando-o com um pano trazido por Vaik, que ficou observando ele se satisfazer com a primeira refeição com que Dimios se alimentava em trinta e seis horas desde que caiu da nave estelar. Terminando o prato, entregou-o ao garoto, que disse:
            – Espero que tenha gostado, Dimios...
            – Como sabe quem eu sou?
            – Muitas pessoas neste planeta possuem poderes telepáticos...
            – Mesmo crianças como vocês?
            – Principalmente nós... – Vaik se levantou, e prosseguiu para fora do salão depois de sorrir para o Senhor de Castelo.
...

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Crônicas dos Senhores de Castelo: Fanzine - O Filho do Fim - Capítulo 07


Chuva Ácida



            O sinal da próxima região desafortunada soava alto, bem alto. Todos correram para se esconder onde podiam, lutando contra os ventos de gases tóxicos que se intensificavam. Nerítico estava próximo a essa área acompanhando Darla e perguntou a moça o que significava o alarme:
            – Corra... – ela respondeu, fazendo os dois acelerarem o passo.
            A moça não lhe deu maiores detalhes, mas Nerítico sabia que algo estava acontecendo no meio das nuvens. O identificador digital em seu pulso começou a apitar e ele verificou-o: ‘Grande quantidade de ácido, perigo!’, dizia o mostrador. “Como isso é possível?”, pensou ele. Darla percebeu a dúvida do ultraquímico e lhe falou sobre o que estava acontecendo:
            – É a chuva ácida. Se não corrermos, seremos derretidos... – a moça não parava nem por um segundo, mesmo usando aquela máscara de gás que parecia ser extremamente incomoda e pesada.
            – Entendo que este lugar esteja cheio de gases prejudiciais, mas meu mostrador indica um nível de ácida superior a qualquer produto químico que eu já tenha visto. Nem a água régia consegue disparar tanto o meu analisador!
            – Moço, compreenda uma coisa, estamos num planeta morto, há séculos que essas chuvas se formam e a cada dia mais elas se tornam corrosivas. Depois que entrarmos na minha vila não poderemos sair por pelo menos duas semanas... – a moça finalmente parou por um instante.
            – Chegamos? – Nerítico perguntou, ainda olhando para ela, sem perceber que foram recepcionados por pessoas mal encaradas que também usavam máscaras de gás.
            – Darla, gracinha! Chegou pro papai aqui? – o mais alto e forte estava à frente dos outros. Segurava um pedaço comprido e metálico de alguma máquina, grande o bastante para esmagar uma pessoa com facilidade. Ele apontava para o meio das pernas indicando o que ela deveria fazer se o obedecesse.
            – Karvak, saia da frente, a chuva ácida está vindo!
            – Vejam pessoal, eu estou sendo tão gentil e olhem como ela me retribui! – os outros riam junto do líder. – Ou você dá ou você não entra!
            – ...! – Nerítico percebia a raiva que vinha dos olhos sob a máscara.
            – Deixo nos passar, ou... – o ultraquímico se pôs a frente da moça para protegê-la.
            – Moço, por favor... – Darla não queria que ele interviesse.
            – Ou o quê, tampinha?! – Karvak apontava o bastão na direção do Senhor de Castelo.
            – ...ou a chuva ácida vai ser o menor dos seus problemas! – Nerítico estava decido a proteger Darla.
            – Moço, por favor, não faça isso! – Darla tocava nas costas do castelar para lhe chamar a atenção. – Vamos para outro lugar, antes que a chuva chegue...
            – Hahahah!!! – Karvak gargalhava alto. – Você?! Rapazes, ensinem a ele uma lição!
            Os outros dois que estavam junto de Karvak começaram a correr e foram para cima de Nerítico. Eles carregavam correntes com maças repletas de pontas que eram giradas freneticamente e foram lançadas em Nerítico, prendendo-o. O castelar estava imobilizado e Karvak se aproximou, batendo com a arma levemente na mão algumas vezes. Nerítico ouviu-o dizer algo, sem entender o que disse, enquanto mexia o maxilar como se estivesse mascando. Quando o bandido ia dar-lhe um golpe certeiro, o castelar tirou o capacete através da jóia da roupa e soprou um gás azulado que derrubou Karvak no chão, fazendo os outros dois se assustarem. O ultraquímico tirou os óculos de proteção que lhe apertavam os olhos e repôs rapidamente o capacete de seu traje, respirando profundamente depois de prender a respiração por tanto tempo:
            – Assim está melhor! – disse, com alguma alegria no tom de voz.
            – Como você fez isso?! – disse a moça, desconcertada.
            – Não sou do tipo que gosta de lutar... – disse sorrindo. – Eu só o coloquei pra dormir com um sonífero forte que penetra diretamente na pele.
            – Menos mal... – Darla falou, com indiferença. – Precisamos correr, falta pouco para a chuva ácida começar.
            Os outros dois, meio zonzos por causa do gás que os atingiu levemente, acordaram da sonolência e viram o grande líder Karvak caído no chão, se assustando muito e largando as correntes que já haviam se afrouxado e largado Nerítico que estava ao lado de Darla. Ao verem que o homem que derrotou seu líder olhava para eles, correram sem pestanejar:
            – Não fujam... Por favor... – o castelar parecia desapontado. – Agora vou ter que levar ele sozinho!
            – Mas, olha o tamanho dele moço, ele é muito maior que o senhor! – Nerítico tirou outra pílula da pulseira e desta vez a engoliu.
            – Vamos ver... – o castelar se mexia e se alongava. – Acho que já fez efeito...
            Nerítico levantou os braços grandes de Karvak e se meteu debaixo dele, erguendo-o em pleno ar:
            – Darla, vamos? O efeito não dura muito...
            – Sim...
            Andando um pouco, havia uma escotilha aberta por onde todos entraram e foi fechada logo depois deles terem passado. A moça respirou, colocando a mão no peito, como se não estivesse respirando por causa da apreensão em chegar de uma vez a um lugar seguro.
            Nerítico, por outro lado, estava deslumbrado com a imagem da vila de Darla que parecia uma escavação profunda que ia vários metros para baixo e em cada lado, incrustados na pedra, haviam pequenas casas com portas e uma janelinha minúscula que era iluminada por uma luz muito fraca, como de uma lâmpada a óleo ou uma vela. No fundo daquele imenso poço, algo parecido com um rio corria numa cor estranha e prateada saindo de um imenso tubo que estava incompleto. No centro, suspenso pelo teto do lugar, uma célula de energia esférica que brilhava fracamente, dando sinais de um fim próximo. O castelar deixou Karvak de lado e tirou a suit, recolocando-a na jóia mágica, também respirando profundamente. Sentiu que o ar não era tão limpo quanto imaginava quando acabou pigarreando com uma irritação na garganta e disfarçou, para não preocupar a moça. Olhou para Darla e estranhou algo:
            – Não vai tirar a máscara?
            – Sabia que uma hora iria fazer essa pergunta... – a moça continuava parada como antes, como se fosse uma boneca de porcelana, meio dura e sem movimentos.
            – Algum problema? – Nerítico estava ficando preocupado.
            – Vou lhe contar de uma vez, para que não me persiga por eu usar esta máscara o tempo todo... Moço, quando eu era pequena, eu gostava muito de brincar lá fora. Mesmo sabendo que os gases tóxicos poderiam me matar, eu continuava a ir lá para fora escondida, sem nenhuma proteção. Um dia, eu resolvi sair antes do tempo de acidez passar e uma pequena poça da chuva havia se formado em algum lugar... – Darla desabotoou o fecho da máscara e a tirou, como não fazia há muito tempo, deixando Nerítico atônito. – ...e ela espirrou em mim, deformando completamente o meu rosto. Mesmo com dores constantes, sobrevivi à queimação. Passo muito tempo dentro de casa e só resolvi sair hoje, porque sonhei que o senhor viria para ajudar as pessoas que continuam vivendo este inferno. Eu sou uma telepata, só consigo te entender por que entendo seus pensamentos e tento retransmitir os meus através deles, por isso conseguimos nos comunicar... Esta realmente não será uma chuva ácida como as outras, ela irá romper finalmente com a estrutura do teto que tanto aguentou o tempo difícil. Por favor moço, mesmo que eu não possa mais chorar por causa das queimaduras, lhe suplico, ajude-nos!
            Darla, a esta altura, já estava de joelhos, de cabeça baixa, com uma expressão terrivelmente triste. Nerítico ficara sem palavras...

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Crônicas dos Senhores de Castelo: Fanzine - O Filho do Fim - Capítulo 06


Contradição



            Ferus estava naquele quarto frio, imaginando o que a senhora estava fazendo e decidiu se cobrir com o pedaço de pano que estava em suas pernas e falar diretamente com ela. Ele deu alguns passos para perto da porta e viu pela fresta a senhora conversando com alguém, um homem um pouco mais alto que ele usando uma máscara de gás, com pele num tom acinzentando nas partes em que se podia ver e demonstrava estar exaltado, gesticulando vigorosamente. A língua que eles falavam era diferente da língua comum empregada pelos Senhores de Castelo, porém era possível ver que por suas expressões que aquilo era uma discussão. A senhora chegou até a se ajoelhar, implorando por algo, talvez pedindo para que aquele homem não fosse a algum lugar. Num gesto violento, ele lhe deu um tapa no rosto derrubando a senhora no chão. A idosa chorava em desespero e engolia a situação amargamente. O homem pegou um objeto eletrônico que estava ligado e emitindo sons, e saiu pela porta sem dar mais satisfações. Ferus sentiu algo entalar na sua garganta e saiu do quarto para ajudar a senhora a se levantar:
            – Tudo bem? – Ferus tentava ser gentil, oferecendo-lhe a mão.
            – Estou... As dores que sinto são do meu espírito – a senhora lhe deu a mão velha e enrugada, e se levantou. – Aquele era o meu filho, ele é drogado e não tem como pagar as dívidas. Ele levou o meu rádio de ondas... – seus olhos queriam se encher de lágrimas, mas eram forçosamente seguradas pela força que ela tirava não sabia de onde.
            – Diga-me... – Ferus e a senhora sentaram a uma pequena mesa feita de pedaços de máquinas diferentes, com apenas duas cadeiras de madeira horrivelmente mal feitas. – Você conhece a língua dos Senhores de Castelo?
            – É uma longa história... – as lembranças deixaram a face da senhora pesada.
            – Tenho muito tempo, fale a vontade. – Ferus sorria, tentando alegrá-la.
            – Este planeta é a escória do território pertencente à Irmandade Cósmica e creio não ser o único. Eu, meus pais, meus avós, meus bisavós... Todos nós nascemos nesse mundo morto, sem esperança de ver novamente o céu limpo e estrelado que os antepassados dizem existir além dessas nuvens grossas. Quando eu era menina, eu me encantava por essas histórias de mundos bonitos e coloridos. Perdia horas conversando com as pessoas que diziam qualquer besteira que fosse, inventada ou verdadeira, e que me contasse mais sobre as maravilhas da existência. Um dia, aquele rádio caiu dos carros voadores falando sozinho, como eu era jovem, me assustei, mas a curiosidade me fez ficar ouvindo e descobri que era aquilo que eu procurava...
            – Aquele era um rádio do Informe do Multiverso, estou certo?
            – É assim que se chama aquela rádio? – perguntou ela curiosa e apreensiva. – Eu aprendi essa língua de tanto ficar ouvindo ela constantemente e nem sei se estou falando direito...
            – Não se preocupe. Você está falando perfeitamente. – Ferus sorria sentindo um calorzinho no peito, um contentamento que nunca sentira antes. – Continue, por favor.
            – Perdoe-me por ser inconveniente, você é um Senhor de Castelo?
            – Heh... Bem... – Ferus não sabia se falava a verdade a senhora ou se mentia para alguém que precisava dele. Decidiu mentir, se a Irmandade Cósmica voltasse os olhos para ele, a senhora não seria a única a ser prejudicada. “O melhor é manter a discrição”, pensou ele. – Não... Mas já ouvi muito dessa rádio também!
            – ... – a senhora suspirou por um momento, em sinal de nostalgia misturada com desapontamento. – As pessoas me diziam que eu estava louca... Que só eu conseguia ouvir aquele rádio falando...
            – O rádio de ondas específicas é assim mesmo, ele só funciona com determinadas faixas de ondas e emite sons audíveis apenas para alguns, para que a Informação seja cifrada para quem não pertence ao território da Ordem dos Senhores de Castelo. – a senhora teve dificuldade em entender a explicação, sem se importar em perguntar o que aquilo queria dizer. – É normal que isso aconteça.
            – Minha vida foi difícil, criança. Já não é fácil viver neste mundo e ainda por cima ser conhecida como louca me fez viver afastada do resto das pessoas...
            – Você tem um filho... Onde está o seu marido?
            – O que é isso? – a senhora desconhecia essa palavra.
            – Eh, bem, a pessoa com quem você teve... mantém! Isso, mantém relações conjugais.
            – Não tive marido... – a senhora estava envergonhada e tentava achar forças para ser franca. Encontrando, foi direta. – Fui estuprada...
            – ... – Ferus se calou e baixou a cabeça. Agora, quem estava com os olhos úmidos era ele.
            – Meu nome é Dinha... Você ainda não disse o seu criança. – a senhora tentava mudar de assunto.
            – Meu nome é Ferus, sou um armeiro. Minha vida é fazer armas e engenhocas. – o jovem castelar estava encabulado em dizer aquilo, passando a mão atrás da cabeça.
            – Você concerta coisas? Muito do que cai do céu está praticamente bom, só não sabemos como concertar. – Dinha foi até um alçapão no chão e puxou-o, abrindo uma passagem para o porão.
            Ferus estava apreensivo, nunca teve que lidar com pessoas estranhas daquela forma, principalmente agora que ele havia se lembrado que não estava com o seu cilindro e suas ferramentas. A velha senhora já subia de volta para a sala trazendo um amontoado de coisas, trazendo um sorriso no rosto:
            – Sempre quis saber para que serve isso... – Ferus olhava tudo atentamente, montando o quebra-cabeça em sua mente.
            – Já sei! Isso vai aqui, aquilo vai ali... – a montagem era rápida, apesar de faltarem algumas peças. – Hun...
            – Algum problema? – a senhora estava animada com aquilo.
            – Você viu o meu cilindro? É um negócio desse tamanho, prateado com uma alça comprida... – Ferus tentava demonstrar como era o objeto fazendo gesto para ser mais bem compreendido.
            – Sinto muito, os trapeiros levaram tudo. Só não tiraram os seus órgãos porque se assustaram comigo...
            – ...! – Ferus sentia que as coisas naquele planeta não eram, definitivamente, normais. – Isso complica as coisas... Eu preciso soldar aqui e ali, e também... estou morrendo de frio! – ele tremia, sentindo um vento que via por debaixo da porta.
            – Ah! Desculpe-me! Roupas são caras por aqui, mal tenho o que vestir... Se bem que... – a senhora foi para o quarto e voltou trazendo um macacão prateado. – Era do meu filho, mas ele não usa mais por sentir que está apertado. Não tenho calçados, ele os vendeu anteontem para comprar mais drogas.
            – Obrigado. Você deve ser a melhor mãe do mundo... – Ferus tentava elogiar, meio sem saber se deveria dizer.
            – Meu filho não vai voltar... – finalmente as lágrimas escorreram pelo seu rosto. – Como mãe eu sei que o perdi no momento em que as drogas tomaram conta dele. – Dinha foi para o quarto, chorar escondida.
            – ... – Ferus tentava agir conforme o seu coração lhe pedia. – Eu tenho que concertar essas coisas!
O castelar se vestiu e foi para o porão da casa, talvez tivesse mais sorte. O que ele viu o surpreendera deveras após ligar as luzes. Com os olhos fascinados, Ferus contemplava um galpão enorme abarrotado de máquinas diversas de todos os tamanhos:
– Pelos reis de Newho! Isso deve ser mais que o suficiente!

...

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Crônicas dos Senhores de Castelo: Fanzine - O Filho do Fim - Capítulo 05


As Crianças

            O irmão mais velho começou a falar com o irmão mais novo, eles estavam em uma caverna que eles mesmos conseguiram camuflar:
            – Elians, como está a nossa comida? – o menino de uns dez anos chegava do monte de lixo e tirava a suit de sobrevivência através da jóia mística do traje.
            – Vaik... – o outro menino, de uns cinco anos, estava com uma expressão chorosa. – Eu não quero mais isso! Eu quero comida de verdade...
            – Desculpe irmãozinho. Comida artificial é tudo o que temos e só vai dar para mais alguns dias... – o mais velho estava pensativo. – Os Senhores de Castelo já estão no planeta, espero que eles não demorem muito para nos encontrar aqui.
            – Hun... – o garotinho menor fazia beicinho, demonstrando algum desgosto infantil. – Eu queria ser como você, eu ainda não consigo sentir as pessoas que estão no planeta...
            – Heh. – Vaik sorria para o irmão. – Um dia você vai sentir todo mundo que está no multiverso!
            – Eba! – Elians pulou de alegria, abrindo os braços para o alto junto com o irmão.
            – Mas, por enquanto, vamos comer a nossa comida...
            – Ah! – Elians fechou a cara tão rápido quanto ficara feliz.
            – Vamos logo, senão eu deixo você sem sobremesa...
            – Você trouxe?!
            – Trouxe, agora vamos comer!
            – Irmão...
            – O que foi agora?!
            – Eu te amo...
            – ...! – Vaik ficou vermelho.

...

            Dimios, como os outros, também se perdeu na grande zona de lixo e caminhava por um lugar com algumas construções antigas. De acordo com o que lhe parecia, aquela era uma região avançada que posteriormente fora abandonada, mas que mantinha alguma ligação com o centro de inteligência do planeta. Andando por aquelas vias, Dimios notava que o lugar estava bem cuidado em comparação com o resto que havia visto: ‘Deve haver alguém por aqui’, concluiu. Foi então que ele viu um homem alto, de casaco vermelho e uma barba esverdeada, junto a uma menina de rosto angelical e vestido também vermelho, cabelos loiros amarrados com fitas na mesma cor do vertido:
            – Veja meu querido Thagir vermelho, um Senhor de Castelo com quem podemos brincar! – Disse a menininha à frente do homem alto.
            – Cara, seria melhor você não ter nascido! – disse o homem, com deboche.
            – Quem disse a vocês que eu sou um Senhor de Castelo? – Dimios se mantinha frio apesar da ameaça.
            – Eu sei, bobinho! – a menina apontou o dedo para Dimios.
            De repente, os prédios ao redor do castelar começaram a cair sobre dele. A garotinha estava muito feliz e bateu palmas para comemorar.

...

            Com Westem não foi diferente, ele também acabou por cair em um lugar bem distante dos outros Senhores de Castelo. No meio dos entulhos, uma grande construção semi-esférica se erguia diante de seus olhos. Muito barulho se fazia lá dentro, ovações e gritos histéricos davam a ideia de que havia um público se divertindo com alguma apresentação. Curioso, Westem se aproximou e percebeu que a língua deles era diferente da língua comum empregada pela Ordem dos Senhores de Castelo. Chegando mais perto, o castelar viu por uma fresta dois seres se digladiando um contra o outro, um menor e extremamente magro de aparência quase cadavérica que mostrava a ponta dos dedos mexendo-os em pleno frenesi, enquanto o outro era um brutamonte deformado de músculos tão grandes que rasgavam sua roupa a cada movimento violento que tentava acertar o adversário. Ambos estavam usando máscaras de ar de modelos diferentes, o baixo usava uma que tampava a boca e o nariz com uma abertura circular na frente de onde se podia ver o filtro de ar; o maior usava uma máscara com dois cilindros de ar em seu pescoço, ligada a eles por dois tubos que se projetavam para frente, um de cada lado. Westem, como fã de uma boa briga, não teve como deixar de exclamar:
            – Eu aposto no grandão! – disse com entusiasmo.
            A luta seguia, o grande tentava esmurrar o pequeno e só conseguia acertar o ar; o outro permanecia do mesmo jeito, sem tentar nenhum golpe, apenas mexendo os dedos. Westem não se continha, queria muito que o lutador parecido com ele desse um jeito naquele baixinho que não sabia lutar de verdade. Foi então que ele parou, o menor ficou completamente parado olhando o maior vir em sua direção com o seu braço descomunal que esmagaria completamente a sua pequena cabeça. Era o que deveria acontecer... Westem ficou abismado com a força que o menor desempenhou com a própria mente, fazendo aquele cara gigante parar em pleno movimento de combate. O menor pareceu ter um tique nervoso, pendendo a cabeça para o lado em movimentos repetitivos e os cilindros de ar da máscara no pescoço do adversário explodiram, machucando-o muito. Seu tamanho gigantesco começou a diminuir e diminuir até ficar aparentemente normal, como os outros nas arquibancadas, que por sinal começaram a vaiar o vencedor. Seus olhos fecharam e ele tirou a máscara, cuspindo sangue no chão e tossindo sem parar. Alguém, que deveria ser o árbitro da disputa, puxou o vencedor pelo braço e o levou para dentro de algum lugar debaixo das arquibancadas. Westem estava pensativo:
            – Droga! Essa eu teria perdido! Nunca mais penso em apostar sem conhecer os lutadores... – os pensamentos de Westem foram interrompidos por um tumulto na entrada do domo de lutas.
As pessoas estavam revoltosas com o resultado da luta e queriam quebrar tudo o que viam pela frente. Westem achou melhor sair dali antes que sobrasse para ele. Isto é, se ele não tivesse tropeçado em cima de alguma coisa quando se virou:
– Olha por onde anda! – o senhor de castelo ainda não havia se acostumado com a suit de sobrevivência.
Levantando-se, viu que aquele que estava debaixo dele era o mesmo cara que estava lutando há pouco. Os revoltosos perceberam que o lutador estava ali e foram atrás dele. Como ele acabou desmaiando, Westem pegou o pequeno nos braços e deu o fora dali o mais rápido que pode.
...

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Crônicas dos Senhores de Castelo: Fanzine - O Filho do Fim - Capítulo 04

Separados



            O jovem castelar Ferus sentia um clima pesado no ar e o frio não ajudava nem um pouco. Logo ele faria a pergunta inevitável:
            – Você viu os outros? – a senhora virou-se e foi para outra sala, fechando a porta sem dizer nada. – Será que é sempre assim que as missões acontecem? – disse ele para si mesmo.

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            Durante a queda, as correntes de ar acabaram por separar os Senhores de Castelo, levando-os para partes diferentes do grande lixão. O castelar Iksio havia caído num lugar repleto de contêineres. Ainda com a suit de sobrevivência, sentia que a energia que vinha de dentro deles lhe parecia familiar e triste. Sem muito que fazer, ele abriu um deles e constatou o que havia ali:
            –Água poluída... Isto com toda a certeza é um absurdo! Estou muito contrariado! – e chutou o contêiner com raiva. – Tem algo por aqui... – sibilos de alguma coisa começaram a chiar atrás dele.
            O multibiólogo virou-se procurando pelo barulho, os montes de lixo iam por todos os lados. Porém, havia um que era mais alto que lhe chamou a atenção. Aproximou-se cuidadosamente e apontava seu dedo para todos os lados. Uma das habilidades de Iksio era controlar a água como condutora de maru mágica, podendo exercer determinadas funções, conforme a sua vontade, desde que ele use o dialeto certo: a escrita mágica – a língua da forma-pensamento. Ele estava se lembrando de suas pesquisas como multibiólogo, quando adentrou uma densa floresta de cores vivas que brilhavam ao passar dele. Iksio chegou perto do monte sentindo que havia um ser vivo ali. Apontou o dedo e escreveu no ar: “Percepção” – dando-lhe maior capacidade de sentir o fluxo de maru ao seu redor. Ele circundou mentalmente o monte e descobriu onde estava o animal...

...

            O mesmo que havia acontecido com Iksio aconteceu com Pilares, o assaltante, sendo que ele usou o pano copiador para evitar a queda direta e planou para mais longe. O teslarniano aterrissou em um lugar mais aberto, com mais máquinas de coleta, o que permitia chegar ao chão. Ele andou um pouco, sabia que estaria muito longe dos outros e tentou permanecer a vista, até que encontrou alguém do planeta e decidiu falar com ele. No entanto, lembrou-se que não poderia dizer que estaria ali para salvar a população como Senhor de Castelo. Resolveu fingir que havia sido levado para lá por engano, junto com o lixo que via cair do céu ao longe por máquinas flutuadoras:
            – O senhor poderia me ajudar? – Pilares agia dissimuladamente.
            – Uhhh... – o homem de pele esverdeada estava de costa e virou-se para ele. – Fome! Fome!!!
            – Desculpe, eu não tenho muito... – Pilares sentia que não estava num bom lugar. – Só trouxe comigo algumas provisões e...
            – Fome... Fome! Fome!!! – Pilares tirou tudo que tinha de comida nos bolsos e jogou para o sujeito, afastando-se.
            O homem pegou os pacotes e começou a mordê-los sem se importar com o papel da embalagem. Pilares estava andando com atenção redobrada para trás, a cada mordida que o sujeito dava naquela miséria de comida. Então ele esbarrou em algo que estava bem atrás dele. Olhando, viu alguém muito parecido com o homem que estava se alimentando a sua frente, com um cheiro forte que ultrapassava o filtro de ar da suit espacial. O enjôo fez ele se ajoelhar, o outro sujeito tentou agarrá-lo e ele conseguiu fugir. Os dois sujeitos diziam as mesmas palavras, na mesma entonação. Outros também começaram a aparecer pelo caminho e Pilares decidiu subir nos entulhos, pois seria mais seguro ficar num lugar onde os famintos não teriam a mesma agilidade que ele. Grandes barulhos surgiam de algum lugar no lixão, então Pilares viu Iksio passar correndo pelos famintos e tentou avisá-lo de que estava ali:
            – Iksio! Ei! Eu estou aqui! – ele acenava freneticamente com as mãos para sinalizar sua localização.
– Desculpe-me! Não tenho tempo para falar! – e o multibiólogo continuava correndo.

...

            Nerítico, o ultraquímico, também havia pousado em segurança em algum lugar daquele amontoado de lixo. Ele mandou o capacete de volta para a jóia e do bracelete no pulso tirou uma pílula rosada que mastigou tanto quanto pode e começou a inflar uma bola. Tirou outra pílula, azulada, mastigou um pouco menos e voltou a inflar a bola, desta vez com maior velocidade, atingindo o tamanho ideal para ricocheteá-lo para cima quando chegasse ao chão. Depois disso, a bolha estourou e ele chegou ao chão são e salvo. O que para ele era um verdadeiro alívio, nunca havia testado aquele método incomum de pousar e estava muito satisfeito com o desempenho dos compostos que havia desenvolvido:
            – Ainda bem que eu não uso materiais de segunda! – disse, recolocando magicamente o capacete.
            – Moço, você veio do céu? – uma moça com uma máscara de gás que cobria o rosto, deveria ter uns dezoito anos, olhava para o ser que havia caído do nada e que tinha olhos engraçados.
            – Ahn... – Nerítico pensava no que falar, enquanto verificava os indicadores de ar e via que os mostradores tóxicos estavam altos. Os óculos de proteção o incomodavam e a abertura para passar as mãos por dentro da roupa não lhe permitiam mexer neles. – Poderia me levar a um lugar onde eu poderia respirar melhor? Meu nome é Nerítico, e o seu?
            – Meu nome é Darla, pode vir comigo, eu moro numa vila aqui perto... – o Senhor de Castelo sorriu para a moça de rosto desconhecido, só não sabia se debaixo daquela máscara a moça lhe retribuíra da mesma forma.
            Andando pelo caminho, numa encruzilhada, Iksio passou correndo pelo caminho transversal ao de Nerítico. O Senhor de Castelo tentou chamar-lhe a atenção, mas fora em vão, o ultraquímico já estava longe. De repente, algo gigantesco passou na sua frente em grande velocidade, sendo difícil visualizar a coisa direito, mas que parecia um monte de lixo ambulante:
            – Era seu amigo? – a moça notou que Nerítico tentou falar com o homem estranho que estava correndo. Podia se ouvir bem a respiração da moça através da máscara de gás, que continuava inalterada.
            – Era... Mas, que coisa enorme era aquela?! – Nerítico demonstrava estar realmente espantado com a coisa.
            – É melhor desistir dele... Ele já deve estar morto agora...
            – ...! – a moça continuou a caminhada e Nerítico foi atrás dela. – Certo...
            Ainda assim, Nerítico olhava preocupado para o longo caminho pensando no castelar de Arthúa com grande pesar.

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            Na correria de Iksio, o Senhor de Castelo só conseguia pensar em uma coisa:
            – Da próxima vez que eu me lembrar daquela sensação, eu vou sair correndo da boca do monstro!!!
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