Cidade Baixa
Naqueles
dias, a chuva ácida estava forte, boa parte do material atingido derretia e era
drenado no subsolo por grandes máquinas aparentemente imunes a corrosividade,
blindadas por algum material vítreo que brilhava com as poucas luzes que
ousavam penetrar a escuridão. O barulho delas durante aqueles tempos sombrios
não deixava ninguém dormir, sempre girando algo que lembrava uma broca,
perfuravam os canos quando ficavam entupidos para que o fluxo do material
derretido continuasse a fluir para a grande indústria que a Irmandade Cósmica
instalara no planeta que roubara – a Cidade Baixa. Esse lugar era medonho,
cheio de prédios atrás de prédios com mais de trezentos metros de altura sem
praticamente nenhum espaço entre eles, um lugar literalmente sufocante. Ele
parece ser perfeito para abrigar populações, mas não se engane. O que realmente
mora lá costuma devorar pessoas...
...
Pilares e
Iksio não encontraram um bom abrigo, ainda separados do resto do grupo,
permaneciam vagando pelas áreas ainda não afetadas pela chuva ácida. Iksio era
espreitado pelo monstro de lixo e esperava que ele o deixasse em alguma hora,
ou que ele mesmo se lembrasse de algo que pudesse ser feito para afastar o
animal descomunal. Já Pilares tramitava por entre os entulhos segundo seus
instintos, evitando voltar para onde os seres famintos estavam: ‘Aquilo cheira
a carne podre!’, pensava ele, ‘Isso porque estou usando filtros de ar!’. De
fato, o lugar tinha um quê de enjoativo que fazia o estômago do Senhor de
Castelo se remexer:
– Droga!
Por que eu fui dar tudo o que trouxe pra ele! Agora quem está com fome sou eu!
– reparando melhor, Pilares percebeu algo interessante a sua frente. – Será
possível? Ou eu estou delirando?
O castelar
se aproximou daquele lugar luminoso, que tinha algumas poucas pessoas rindo,
vendendo alguma comida e falando sem parar e constatou que era realmente o que
pensava:
– Um circo!
– E reparou na palavra que havia dito a si mesmo. – Um circo?
Um homem
estranho, de altura extremamente baixa e membros curtos que não lhe permitiam
andar direito, andava ‘rebolando’ e foi falar com Pilares que não entendeu
nenhuma palavra do que ele dissera. Ele parecia estar convidando-o para entrar
no circo, o que o Senhor de Castelo recusava veemente. Então, saindo de dentro
de um pequeno engradado, outro homem, de aparência muito esguia e comprida –
devia ter uns três metros de altura e ser mais fino que o braço forte de
Pilares – surgiu na frente do castelar. Da mesma forma que o baixinho em forma
de bola, ele parecia chamá-lo para dentro do circo, chegando a tocar levemente
em sua mão para guiá-lo. Pilares não entendeu nada e, temendo acontecer algo ruim
como da primeira vez, jogou uma bomba de fumaça no chão e sumiu. O
entretenimento gratuito fez os dois estranhos baterem palmas, ou quase isso, o
alto e magro batia bem devagar e o pequeno e roliço batia as mãos várias vezes,
sem que elas se encontrassem.
Pilares com
certeza achava aquilo estranho, no meio do escuro aparecer um lugar bizarro
como aquele e, tentando se lembrar do rosto dos esquisitos, percebeu que só
havia uma expressão em suas faces: um semblante liso com olhos e boca pintadas
com alguma tinta que já ficara desbotada pelo tempo. E concluiu:
– Eles não tem rosto!
Pilares ficou por ali, sem querer
ser visto por ninguém, como um assaltante, espreitando e reconhecendo a região.
...
Iksio
também acabou por conhecer uma nova parte do planeta. Na última fuga do monstro
de lixo, o Senhor de Castelo foi parar nos limites da Cidades Baixa. Não tinha
como perceber a imensidão do lugar, pois as nuvens estavam baixas e continuavam
espessas. Porém, havia alguma luz para iluminar o breu noturno e decidiu pular
a cerca que separava aqueles prédios da zona do lixo:
– Pelas
águas límpidas de Arthúa! Como um senhor distinto como eu, que sempre evita
fazer algo errado, está pulando uma cerca?! Iksio, você está me saindo muito
arteiro! – o castelar falava consigo mesmo, enquanto continuava andando cidade
adentro. – Quando sairmos daqui terei novas aulas de etiqueta com a senhorita
Liliana de Tianrr... Ah, Liliana, minha amada e doce donzela Liliana, da alta
sociedade urbana de Tianrr, que falta você me faz neste mundo arrepiante! Tu és
a luz que ilumina meus esforços! Oh, se olhastes para mim ao menos uma vez! E
percebesse que posso ser um homem forte, como um Senhor de Castelo, e ainda
assim ser gentil e educado como tanto sonhas. Iksio! Recomponha se! Um homem de
etiqueta fina nunca deve ter devaneios como este e demonstrar tamanha fraqueza!
Ah... Dane se, não tem ninguém aqui!
O castelar
ouviu algo passar por trás dele, o que o fez sentir seu corpo gelar:
– É...
Bem... – ele tentava recompor-se para demonstrar seus hábitos refinados
novamente. – Desculpe-me se pareço rude e louco. Estive correndo e me
escondendo de uma fera maligna que me perseguia por onde quer que eu fosse e...
Iksio levou
um susto, quem estava diante dele era sua amada Liliana, vestida da mesma forma
com a qual ele se lembrava da última vez em que eles se viram. Um corpete azul
lindamente bordado em violeta, uma saia recatada de alta costura com uma renda
brilhante, um chapéu diminuto para a cabeça com uma armação metálica que se
retorcia delicadamente envolta da cabeça em tons arroxeados; sua face
suavemente triangular era branca e aveludada, o nariz e a boca eram menores que
as comuns e os olhos, negros como a noite, tinham íris grandes que não deixavam
transparecer o branco dos olhos. Seus dois pares de braços, com luvas num tom
azul quase branco que iam até o cotovelo completavam a visão do Senhor de
Castelo:
–
Desculpe-me, seja lá quem você for, você não pode ser Liliana... – Iksio
apontou o dedo na direção da moça e escreveu no ar com a escrita mágica. – “Reconhecimento”!
Os sentidos
do castelar se afloraram novamente e ele pode ver com clareza, a criatura não
tinha forma certa, era um construto que mudava de forma e que se movimentou
enquanto Iksio o olhava através de outros espectros luminosos. Retornando do
estado de transe, o Senhor de Castelo se deparou com algo mais desconcertante, a
criatura artificial assumira uma forma um tanto peculiar:
– Pelas
Cascatas da Purificação! Sou eu... de cuecas!
...