DISCUSSÃO
Kalliat socou Dantir com estrema
violência:
— Eu não
quero saber! — o oririano estava ofegante. — Pensei que você fosse meu amigo! —
e saiu, deixando o príncipe de Newho caído no chão, cuspindo sangue e com o
nariz quebrado.
— Kalliat...
Dantir permaneceu ali, em
silêncio, por vários minutos. Sua cabeça estava cheia, ele assumia novos
compromissos, novas responsabilidades, um destino que talvez não quisesse para
si mesmo.
Ainda
sentindo-se culpado, levantou-se e viu o pacote com tinta vermelha para o
cabelo em cima de sua mesa de estudos. Entrou no banheiro e fez todos os
procedimentos. Seu cabelo, parecido com o do pai, agora assumia o tom vermelho
que só aparecia em manchas pelo cabelo. Enxugou a cabeça com uma toalha e se
olhou no espelho:
— Porque
somos tão parecidos? — perguntou-se, lembrando do irmão e das cenas em que o
altariano Rubber tomou o corpo dele para si e fugiu pelas portas do paraíso
para sabe se lá onde.
No canto do
espelho Dantir viu um vulto e virou-se para ver:
— Você de
novo? — era Nina, vestida com sua roupa de batalha e cabelos presos acima da
cabeça num rabo de cavalo.
— Pintou o
cabelo... — a moça sorria amavelmente. — Gostei.
— O que
quer? Veio tentar me sequestrar de novo?
— Alguém já
te disse que você é muito irritadinho?
— Já e se
isso não é motivo suficiente pra você sair daqui, eu saio...
— Não seja
grosseiro com a dama... — disse Lacroh na porta do banheiro, também vestido em
sua roupa de batalha nova, óculos de proteção na cabeça com um colete e botas
grandes dos Caçadores Sombrios.
— Você
também? Vocês não cansam de me perseguir?
— Os
primeiros anos aqui na ilha foram os melhores! — lembrou-se Nina.
— Nós três
tentávamos fugir da ilha e éramos pegos pelos nossos mestres...
— E pelo
seu pai, que eu me lembro bem! — Dantir se referia a Dimios, Senhor de Castelo
que assumiu posição de destaque na relação entre os Caçadores Sombrios e os
castelares e que adotara Lacroh ainda solteiro. — Aquele Caçador Sombrio não é
humano!
— Meu pai é
um lutador perfeito... — Lacroh socou o ar demonstrando movimentos ágeis e
precisos. — Me ensinou muita coisa na Arena de Batalha Secreta.
— Vem aqui...
— disse baixinho. — Os Caçadores Sombrios realmente passam por situações de extremo
risco como dizem por aí? — perguntou Dantir, um tanto curioso.
Lacroh riu.
Aproximou-se bem perto dele e cochichou em seu ouvido:
— É pior...
— Os dois
vão ficar aí se lembrando do passado? Temos que ir nos encontrar com o Daimio. —
ponderou Nina que observava a embalagem da tinta. — Você usa essa marca de
tinta? Ela é permanente! Mesmo que cresça de novo, ele continuará tendo essa
cor!
— É assim que eu quero o meu cabelo...
— Dantir reparou em Nina. — Ahn! Agora que eu notei, você também pintou os
cabelos! O que aconteceu com os cachinhos dourados e o vestido vermelho?
— Você notou? — Nina mexeu nos
cabelos, sorrindo admirada. — Eu deixei de ser menina, sou uma mulher forte e
poderosa agora. Não gostava de como eu me via parecendo uma doce menininha, a
força sombria que habita na minha sombra requer poder de decisão, caso
contrário...
A moça desconversou, ficando
quieta.
— Porque parou Nina? — perguntou
Lacroh, interessado.
— Ela tem medo da própria
sombra...
— Então é isso!
— ...! — Nina olhou para Dantir
com desgosto.
— A sombra dela tem vida própria
e dizem que ela já quebrou o espelho do banheiro gritando com ninguém...
— Pelo jeito andou interessado em
mim. — percebeu a moça. — Diga-me, o que mais você sabe?
— Sei sobre o caso com o Mundergrand,
sobre o estado em que você deixou um dos seus colegas de classe morrendo de
medo e... — Nina sorriu abertamente. — Esqueça, eu não sei de nada...
— Hahaha... Bobinho! Adorei te
ver assim. Vamos?
— Vou por minha roupa de batalha
e já vou. Vão na frente...
— Ok! — disse Lacroh. Nina e ele
saíram.
Dantir se trocou e pôs sua roupa
de batalha, uma camisa de algodão simples com uma calça cheia de bolsos e um
casaco escuro, feito da pele de um híbrido de Gorlak com um animal mágico e
noturno, conferindo-lhe propriedades únicas e exclusivas, presente de seu tio
Phelir. Quando ia sair do banheiro, se deparou com um conhecido.
— Pai?! — o filho correu e o
abraçou forte.
— Filho, como você está,
saudades? — Dantir não conseguiu responder, estava soluçando e chorando
copiosamente.
...
— Que surpresa! Pensei que não
iria te ver no dia em que receberia a tatuagem fantasma — com Dantir mais
calmo, eles se sentaram na cama. — Me disseram que os mares boreais haviam
ficado perigosos e que você não viria...
Thagir
demorou a responder, o filho mais novo havia crescido distante da família sendo
treinado para ser um Senhor de Castelo e estava admirando o quanto o jovem de
dezessete anos havia crescido:
— Estou
orgulhoso de você...
— Ahn? O
que é isso pai — Dantir estava meio envergonhado. — Já está ficando velho?
Thagir
sorriu e passou a mão na cabeça do filho:
— Mas por
que seu cabelo está vermelho?
— Isso? — o príncipe desviou o
olhar do pai, a dor do soco que levara de Kalliat ainda estava ardendo. — Tive
uma discussão com Kalliat... Não vou fazer dupla com ele.
— Eu soube que você foi
requisitado para compor a elite. No entanto, isso não responde a minha pergunta
mocinho! — Dantir ficou em silêncio por alguns instantes e respondeu.
— Agora que não vou ficar mesmo
nas linhas de frente na guerra cósmica, quero continuar me lembrando dele...
— Você não vai esquecer mesmo
dele, não é?
— Nunca! — disse decidido. — Ele
é meu irmão!
— Mesmo que ele tente te matar?
— ... — Dantir não respondeu,
permaneceu indiferente.
— Desde que ele foi levado pela
Irmandade Cósmica, o tal de Rubber deve ter feito algo a mais com o corpo de
Vaik...
O príncipe se levantou, cerrando
os punhos.
— Você não entende... Nem você,
nem os outros que insistem em me dizer que ele não é meu irmão. Estou cansado
de vocês... Se não tiver algo melhor pra dizer, é melhor que vá embora.
— Filho...
— Não fale mais nada... Vocês não
entendem! Vocês não viram o que eu vi naquela nave! Ele sorria, mas não era
sorriso, não havia felicidade nele. Era como se ele chorasse, como se estivesse
repleto de algo que não pudesse expressar. Eu ouvi perfeitamente quando a alma
dele disse várias e várias vezes a mesma frase... — ele sentiu falta de ar e
parou.
— E qual era?
— “Me ajude...” Nada além disso
numa imensidão escura e sem vida. Ele fingia o tempo todo para que eu não
ficasse irritado ou chateado e quando ele se foi... Ninguém ajudou ele! Eu era
uma criança naquela época, pai, e agora que cresci entendo melhor do que nunca,
eu preciso e vou ajudá-lo como ele me ajudou naquela nave, naquele planeta sem
nome. Eu sou o Filho do Fim, nascido sob esta estrela que me levará aonde
ninguém jamais foi...
Thagir ouviu tudo pacientemente.
— Está certo, acho que você já
está pronto...
— Como assim? — Dantir olhou
desconfiado.
— A sua herança... — Thagir tirou
dois braceletes novinhos e lustrosos dos bolsos de grande casaco verde.
— A jóia de Landrakar e o Coração
de Thandur!
— Experimente! Foram feitos pra
você...
— Eu... Eu não sei o que dizer
pai...
— Apenas dê um abraço nesse seu
velho... — e se abraçaram novamente.
— E Curanaã? Como você vai defender
Newho?
— Deixe comigo e com sua mãe...
— Desculpe, nem perguntei como
estão as nossas meninas... — Dantir sorriu enquanto colocava os braceletes.
— Sua mãe está ótima! Alana e
Lara se tornaram ótimas arqueiras... — Thagir pareceu nostálgico ao suspirar ao
fim da frase. Os últimos dezoito anos lhe vinham repletos de memórias incríveis
para ele que era um dos melhores Senhores de Castelo de todos os tempos.
— Faz tempo que não as vejo...
Trouxe um fotograma?
— Sim, claro... — e ele tirou o
objeto de outro bolso, que começou a brilhar.
— Ah, pai! De novo! Será possível
que não tem mais ninguém pra tirar esse fotograma que não seja você?!
— Eu não fico bem em fotos... Seu
tio Kullat sempre reclamava disso... Aquele horroroso! — Thagir riu,
lembrando-se dos velhos tempos com o parceiro castelar que está defendendo
Oririn.
— Sei... — sem entender bem o que
era engraçado, Dantir olhou para o relógio temporal. — Preciso ir, estão me
esperando...
— Vá, cumpra o seu destino como
Senhor de Castelo... Iqueróm wa puma!
— Wa puma! — Dantir ia se virar e
pensou em algo. — Para sempre Senhor de Castelo...
Thagir sorriu novamente e o filho
saiu, escondendo uma lágrima por se despedir novamente do pai.
...
De volta à sala secreta:
— Ah, é
aqui! — Dantir atravessou a parede.
— Porque a
demora? Não conseguiu achar uma roupa que combinasse? — reclamou Lacroh.
— Não era
roupa, era outra coisa...
— Uau! Que
braceletes lindos! — disse Nina, admirando o brilho das jóias da família real
de Newho.
— Ah! Isso?
Meu pai acabou de trazer pra mim... — Dantir estava meio sem graça enquanto se
sentava.
— Thagir
está na ilha? — Lacroh estava tremendamente interessado, encostando os olhos de
coral perto dos olhos do amigo. — Como eu não vi isso?
— Se
conheço meu pai, deveria estar acompanhado de um mago com capacidade de
bloquear os rastros temporais... Nesses tempos de guerra soube que os Rawkers
têm trabalhado sem fim.
— De
fato... — ponderou Nina. — Quando cheguei aqui eu conseguia sentir os mares
boreais como ondas que vem e vão o tempo todo. Agora é como se estivéssemos
boiando em uma lagoa de água parada.
— Pois é.
Também sinto isso... — os olhos da moça brilharam, ao reafirmar a conexão
natural que há entre eles, a qual Dantir pouco reparou e foi sentar-se em seu
lugar completamente insensível. Nina sorriu, não era a hora certa, porém, ela
chegaria em breve, também virando-se para frente.
— Todos
presentes, mestre... — disse Lacroh, enquanto Dantir olhava para as mesas que
estavam vazias.
— Aconteceu
alguma coisa? — perguntou Dantir.
Um pequeno aparelho no centro da
mesa fez um chiado, ouviram-se quatros toques longos e intermitentes de um
instrumento de corta (anúncio do início da transmissão do Informe do Multiverso
que cifra suas ondas para que um número limitado de seres, especialmente os
Senhores de Castelo, possam ouvir.)
— Peço
perdão por ter saídos às pressas, fui chamado urgentemente para o planeta
Adrilin e me encontro impossibilitado para continuar a guiá-los em sua missão.
Vocês estarão sozinhos... — disse o Daimio pelo rádio.
Os novos
Senhores de Castelo e o Caçador Sombrio ouviam atentamente, sabiam que no grupo
de elite não receberiam tanta atenção em meio à guerra cósmica e teriam de
tomar decisões eles mesmos. O daimio continuou:
— A
primeira missão de vocês será escoltar o arquétipo de Teslar às linhas de
frente. As naves da Irmandade estão chegando ao planeta e possivelmente tentarão
se instalar nele como novo ponto de referência para as tropas altarianas
continuarem penetrando o multiverso rumo à ilha de Ev’ve...
Dantir interrompeu o mestre por
causa de uma dúvida:
— Qual corte nós enfrentaremos em
Teslar?
— De acordo com os nossos
informantes a nave da irmandade foi reconhecida como Quarentena, pertencente a
corte dos Ilusionistas. Algum interesse, jovem Castelar?
— Nada em especial, as cortes são
medidas por força e saber qual delas enfrentaremos nos ajudará a encontrar
melhores estratégias... Por falar nisso, quantos castelares poderemos convocar
para nos acompanhar?
— Os números de castelares estão
em baixo número, a amplitude de ataque dos altarianos requer o máximo possível
de agentes em campo...
— Quantos...
— Dantir! Não interrompa o
mestre! — temeu Lacroh por seu amigo.
— Três... — o caçador ficou sem
reação.
— Ótimo, será o suficiente... —
Dantir se levantou e fez uma última pergunta. — o transporte está pronto?
— Esperando nas docas... Boa
sorte, castelares, que Nopporn esteja com vocês!
— Iqueróm Wa Puma! — gritou
Dantir levantando o braço direito para o alto com o punho fechado.
— Wa puma! — disseram os outros
dois se posicionando.
Do lado de fora da sala, Lacroh
estranhou a maneira como o amigo estava agindo:
— Dantir, está tudo bem?
O jovem castelar olhou secamente:
— Me chame de Elians... — e foi
na frente.
— Mas o quê?
— Você não conhece Dantir muito
bem, bobinho...
— É Elians! E venham logo,
partiremos em duas horas!
— ...!
— Moça, essa não é o Dantir que
conhecemos...
— Vamos ver Lacroh, vamos ver... —
Nina estava indignada.
...
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